LUSOFONIA: CRISE E CONSTRUÇÃO

O crioulo cabo-verdiano, embora com léxico e fonologia oriundos do português, ainda não tem um único sistema de escrita definido. (foto: Mindelact)

Participei, aqui na Galícia, do “III Encontro Internacional de Políticas de Intercambio no Ámbito das Artes Escénicas”, promovido pela Cena Lusófona e Centro Dramático Galego.

Oito países estiveram presentes neste evento: Portugal, Espanha, Cabo Verde, Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Moçambique e Brasil.

Embora vivendo a crise que assola a Europa, Portugal e Espanha seguem seu curso com parâmetros e paradigmas que se assemelham aos nossos, no Brasil.

Encontramos processos conhecidos: o Estado define o valor de um subsídio para a cultura (umas vezes maior; outras, não), faz sua distribuição e as coisas vão se encaixando.

É óbvio que, em tempos de crises, estes números chegam a assustar um bocado. Existem teatros que fecharam suas portas; companhias que se desfizeram; ainda, muitos coletivos sem subsídio, tentando um lugar num espaço cada vez mais competitivo e fechado.

Mas, sabemos, o teatro acaba – a duras penas, é verdade – encontrando seu curso e definindo suas dimensões. Ademais, o povo do teatro encontra, mais cedo ou mais tarde,  espaços para vociferar e imprimir suas percepções. É assim em todo o mundo.

Como artista brasileiro, isso não me causa surpresa. Sempre vivemos a luta dos desesperados e nem por isso deixamos de produzir e planejar o futuro.

Há de ser assim para portugueses e espanhóis, certamente. Sangra-se, sim, com a falta de perspectivas; mas, importante afirmar – com tristeza, claro – que não se morrerá por isso. E, neste campo, outras ações hão de encontrar seu caminho que, queiram ou não, continuarão seu curso. Afinal, Artaud já nos ensinou que é no ritual que encontraremos sempre espaço para o nosso renascimento.

Mas o encontro não se resumiu a discussões da Península Ibérica. Em maioria – se não em número de representantes  – estavam os africanos.

E, muito próximo da África, percebo – além da importância do povo africano na construção do Brasil – o quanto precisaremos lutar para que, em algum momento, aquele continente tenha alguma dignidade.

Fiquei conhecendo experiências fascinantes e inspiradoras. A de João Branco, por exemplo, que realiza há 19 anos, o festival Mindelact, em Mindelo, Cabo Verde, sem exagero um dos principais do mundo. Pra citar um só exemplo, a companhia de Peter Brook já se apresentou no evento.

Mas o trabalho de João Branco vai muito além. Em busca de uma identidade, tem traduzido para o crioulo cabo-verdiano clássicos importantes da literatura dramática universal. Para que tenham uma pequena ideia, o crioulo cabo-verdiano, embora com léxico e fonologia oriundos do português, ainda não tem  um único sistema de escrita definido.

Emocionante, no entanto, foi conhecer a luta de Jorge Biague, da Guiné-Bissau. Aos 40 anos e nascido no sul do país, na região de Quinara, faz teatro desde 1992. Na verdade, chegou ao teatro pelo cinema onde atuou em vários filmes de Flora Gomes, o cultuado diretor guineense.

Jorge participa do coletivo Os Fidalgos, fundado em 2002, a partir de oficinas que receberam de atores e diretores portugueses, especialmente, e vem lutando para que o teatro em seu país tenha alguma dignidade. Também organiza a primeira biblioteca de teatro da Guiné-Bissau. Em uma conversa, segredou-me que “fazer teatro na Guiné é para quem tem muita coragem”.

De Moçambique, o quarto país mais pobre do mundo, conheço o trabalho de Nataniel Ngomane, que estudou na USP, onde fez mestrado e doutorado, e que estrutura a tão sonhada Escola de Comunicação e Artes de Maputo, ligada à Universidade Eduardo Mondlane.

Nataniel nos revela que o orçamento anual de sua instituição é de pouco mais de R$ 50 mil/ano. E que não consegue contratar professores porque em seu país não se encontram docentes capacidados.

Com realidades tão resignadas, os países africanos merecem um olhar mais atento. Se, por um lado exprimem dificuldades que beiram o absurdo, por outro trazem uma energia que, mais do que contagiante, nos aponta um caminho.

O ocidente precisa ser revisto. É desleal a luta de alguns povos. Neste “III Encontro Encontro Internacional de Políticas de Intercambio no Ámbito das Artes Escénicas” ficaram bem claras nossas diferenças.

E, mais do que aprender com os africanos, seja através de suas técnicas ou de alguns de seus procedimentos, é vital que tenhamos que retroceder um pouco para poder avançar com alguma equidade.

Só um exemplo, para que fiquemos atentos, este encontro de intercâmbio cultural aconteceu na imponente Cidade da Cultura de Santiago de Compostela, um complexo de quase 142 mil metros quadros e que, segundo o jornal britânico The Guardian custou € 400 mi e que, ainda pela metade de sua construção, consumou quatro vezes o valor originalmente planejado. Mais: só a conta com segurança e luz  do local custa aos cofres galegos cerca de € 3,5 mi/ano.

Não, este fenômeno não se limita a Santiago. Ao contrário, é típico das sociedades avançadas.

Triste apenas é inferir que, enquanto isso, os africanos não têm verbas nem condições para pensar uma pedagogia para um teatro incipiente.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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