POR BLOG DO ARCANJO · 09/02/2024
Rodolfo García Vázquez e Ivam Cabral, da Cia. de Teatro Os Satyros e SP Escola de Teatro, posam em frente ao Taj Mahal, na Índia, em janeiro de 2024 © Reprodução Blog do Arcanjo 2024
Por MIGUEL ARCANJO PRADO
@miguel.arcanjo
Oator, dramaturgo, escritor e psicanalista Ivam Cabral começou o ano de 2024 a 15 mil quilômetros do Brasil. Mais precisamente na Índia, para onde viajou ao lado do diretor e dramaturgo Rodolfo García Vázquez, companheiro na fundação da Cia. de Teatro Os Satyros em 1989, um dos grupos brasileiros de maior prestígio internacional, e da SP Escola de Teatro em 2009, maior centro de formação em artes cênicas da América Latina e com parcerias em nível global. Ambos participaram, como convidados, da segunda edição do International Festival of Theatre Schools. No encontro, além de proferirem conferências, costuraram importantes parceria da SP Escola de Teatro, como a aproximação com a RADA – Royal Academy of Dramatic Art, de Londres, no Reino Unido, onde estudaram estrelas como Vivian Leigh e Anthony Hopkins. Cabral conversou com exclusividade com o Blog do Arcanjo sobre a recente experiência indiana, e conta suas impressões sobre a cultura do gigante asiático detentor da maior população do mundo, com 1, 428 bilhão de habitantes. Leia com toda a calma do mundo.
Miguel Arcanjo Prado – Qual o balanço você faz da viagem à Índia? Quais lições aprendeu com o teatro indiano?
Ivam Cabral – Meu Deus, foram tantos os ensinamentos! Ter conhecido a Kalamandalan, a principal escola de Kathakali e outras danças do sul da Índia, foi uma das experiências mais incríveis que vivi. Na instituição, os estudantes ingressam aos 12 anos e passam por uma formação que dura 10 anos, com 10 horas de atividades diárias, de segunda a sábado. As aulas começam às seis da manhã, mas já às 4h30 os alunos estão em processo de aquecimento. Tive a oportunidade de acompanhar uma aula na qual as estudantes estavam praticando o verbo “pensar”, em um exercício que incluía não apenas o treinamento vocal, mas também o corporal. Durante três horas, com toda a calma do mundo, testemunhei cerca de seis estudantes trabalhando incansavelmente. Essa serenidade, essa dedicação, esse desapego e a apreciação de um tempo que deixa de ser abstrato para se tornar o reflexo de um trabalho são características que raramente encontramos no Ocidente. É o tempo da elaboração que transcende a cronologia, simplesmente. Temos muito a aprender com eles.
Miguel Arcanjo Prado – Quantos dias você e o Rodolfo ficaram na Índia, por quais lugares estiveram? Algum foi mais marcante?
Ivam Cabral – Foi uma viagem cansativa. Aliás, bem cansativa. Já tinha viajado para mais longe, em outras ocasiões, China e Japão, por exemplo. Mas a Índia requer uma outra percepção de tempo e distância. Até porque, durante sete dias, ficamos isolados em uma comunidade acadêmica, em uma área rural, no meio do mato, respirando e pensando pedagogias para o teatro, com pesquisadores do mundo todo. Participamos da segunda edição do International Festival of Theatre Schools, a convite de Abhilash Pillai, diretor da School of Drama & Fine Arts, vinculada à Universidade de Calicut. O evento teve lugar na província de Kerala, na cidade de Thrissur, e contou com a presença de dezenas de escolas e milhares de profissionais de teatro de todo o mundo. O tema do festival deste ano foi “Carnaval da Pedagogia: Teatro e Ecologia”. Eu e Rodolfo García Vázquez viajamos juntos, e além de proferir uma conferência, ele conduziu um workshop de três dias com estudantes de diversas regiões da Índia e de outros países. A temática que Rodolfo trouxe para o debate foi como as artes cênicas podem abordar as urgentes questões climáticas do século 21. Em minha conferência, abordei a relevância de considerarmos a interconexão entre o meio ambiente e a ecologia. Parti da premissa de que, ao discutirmos o meio ambiente, estamos, sobretudo, tratando das relações humanas que permeiam todas as questões, envolvendo não apenas rios e florestas, mas também, e sobretudo, as complexas interações sociais. A caminho de Kerala, percorremos o trajeto de Nova Deli até o destino, passando por Mathura e Agra, onde se encontra o Taj Mahal, considerado a maior declaração de amor da história da humanidade. Também exploramos Mumbai, o epicentro de Bollywood, e visitamos a Ilha da Elefanta, que preserva vestígios de uma civilização extinta. Lá, encontramos sete cavernas esculpidas pelo homem em homenagem aos deuses hindus, exibindo grandiosas esculturas de Shiva em suas diversas formas.
Miguel Arcanjo Prado – Quais parcerias para a SP Escola de Teatro e a Cia. Os Satyros vocês construíram na viagem?
Ivam Cabral – Em 2025, planejamos participar novamente do International Festival of Theatre Schools. Já estabelecemos parcerias com a School of Drama & Fine Arts, e possivelmente teremos formadores e estudantes colaborando com eles. Além disso, após negociações com escolas do Nepal, Bangladesh e Paquistão, estamos estruturando uma parceria com a RADA – Royal Academy of Dramatic Art, de Londres, no Reino Unido, possivelmente a escola de teatro mais famosa do mundo. Dentre seus ex-alunos estão Laurence Olivier, Vivien Leigh, Roger Moore, Peter O’Toole, Omar Sharif, Anthony Hopkins, Kenneth Branagh, Ralph Fiennes, Timothy Dalton, Glenda Jackson, entre outros.
Miguel Arcanjo Prado – O que você achou de visitar o Taj Mahal? Lembrou-se da música do Jorge Ben Jor?
Ivam Cabral – Foi uma experiência incrível, possivelmente uma das mais reveladoras da minha vida. Nos últimos anos, dediquei-me ao estudo do psicanalista Wilfred Bion (1897 – 1979), analista de Samuel Beckett, Stanley Kubrick, Clint Eastwood, Jane Fonda, dentre tantos, que nasceu na Índia, mas que mudou-se para o Reino Unido aos oito anos de idade. Bion introduziu na psicologia e, sobretudo, na psicanálise, a concepção do trabalho terapêutico em grupo, oferecendo uma perspectiva única e valiosa para a compreensão dos fenômenos coletivos. Inesperadamente, durante o trajeto entre Nova Deli e Agra, onde está localizado o Taj Mahal, deparei-me com a cidade de Mathura, a terra natal de Bion, associada a Krishna, que teria vivido sua última encarnação ali e onde existe o Krishna Janmabhoomi Temple. No percurso, pude contemplar a grandiosidade e os mistérios do rio Yamuna. Com toda essa riqueza de aprendizado, confesso que a presença de Jorge Ben Jor não ocupou muito espaço em meus pensamentos [risos].
Miguel Arcanjo Prado – A viagem teve um momento de emoção com as cinzas dos cachorros que vocês perderam recentemente Chico e Cacilda, que fizeram parte do cotidiano da SP Escola de Teatro. Como foi esse momento?
Ivam Cabral – Foi o Rodolfo quem teve a ideia de levar as cinzas dos nossos queridos, poucos dias antes de nossa viagem. Chico, o nosso labrador caramelo, faleceu em 10 de dezembro, e Cacilda, a mascote da SP Escola de Teatro, um ano antes, juntamente com Blangis, um dos nossos gatos. Os três envelheceram ao nosso lado, compartilhando muitos anos conosco. Inicialmente, a proposta do Rodolfo me surpreendeu e causou um certo nervosismo. Imaginar passar pelas alfândegas com as cinzas dos nossos amados era inusitado. Contudo, não havia muito o que fazer, e, na verdade, acabei gostando da ideia. No final, tudo transcorreu sem contratempos nas alfândegas, e quando percebemos, estávamos na Índia, com o rio Yamuna e a cidade de Mathura no trajeto entre Nova Deli e Agra. A cerimônia foi silenciosa, marcada por lágrimas e muita saudade, mas ao mesmo tempo singela e poética. Assim, o rio Yamuna, que também banha o Taj Mahal, passaria a guardar para sempre, em Mathura, uma das sete cidades sagradas dos hindus e o local de nascimento de Krishna, as cinzas dos nossos queridos. Uma conexão pra eternidade.
Miguel Arcanjo Prado – O que mais lhe chamou a atenção na cultura indiana?
Ivam Cabral – Tudo ali é surpreendente e muito diferente. E eu nunca vi tanta gente, socorro [risos]. Acho, também, que foram os aeroportos mais movimentados que conheci.Na cultura indiana, diversas características cativam e intrigam. Primeiramente, a profunda espiritualidade presente em diferentes formas religiosas, manifestações artísticas e festivais impressionam pela riqueza simbólica e significados. Tem também a culinária. Amo! Sabores intensos e diversidade de pratos, é algo incrível e uma experiência sensorial única. Além disso, as vestimentas tradicionais coloridas e ricamente adornadas, como o sare, revelam a expressividade e o cuidado estético presente na sociedade indiana. A arquitetura magnífica de templos e palácios é outra faceta impressionante. Incrível a habilidade técnica e o simbolismo cultural. A vibrante diversidade cultural e linguística do país, as danças clássicas, a música tradicional e uma variedade de costumes regionais também são aspectos que me encantam. A filosofia intrínseca ao Ayurveda e ao Yoga, que se tornaram conhecidas globalmente, reflete uma abordagem holística à saúde e ao bem-estar. A complexa sociedade indiana, com suas tradições milenares coexistindo com a modernidade, cria um fascinante contraste. A calorosa hospitalidade, expressa no ditado “Atithi Devo Bhava”, que significa algo como “o visitante é um presente de Deus”, adiciona um toque humano acolhedor a essa rica tapeçaria cultural. Ah, a Índia é uma fonte inesgotável de descobertas e experiências que ampliam minha compreensão do mundo. Embora mudanças sociais e legislativas tenham buscado eliminar as discriminações, o sistema de castas continua a influenciar aspectos sociais, econômicos e religiosos, permanecendo como um grande desafio para a sociedade indiana, que possui uma estrutura social estratificada baseada em hereditariedade, atribuindo status e funções específicos a cada grupo. Este, possivelmente, é o lado mais triste da Índia, que abriga a categoria dos Dalits, aproximadamente 18% da população, historicamente marginalizados e conhecidos como “intocáveis”.
Miguel Arcanjo Prado – O Brasil deve se aproximar mais da Índia?
Ivam Cabral – Penso que uma aproximação mais estreita entre o Brasil e a Índia seria altamente benéfica, tanto em termos econômicos quanto diplomáticos. Ambos os países têm economias emergentes, diversificadas e complementares, o que pode abrir portas para parcerias comerciais mais robustas e oportunidades de investimento mútuo. Além disso, há uma base cultural sólida entre Brasil e Índia, com tradições vibrantes e uma riqueza de expressões artísticas. Fomentar intercâmbios culturais e colaborações nas áreas de arte, cinema, música e esportes pode fortalecer ainda mais os laços entre as nações e promover uma compreensão mais profunda de suas respectivas culturas.
Fonte: Blog do Arcanjo