Escorando o corpo na quina da tarde, desci à estação Sé do metrô e vi o que já nasce comum às novas gerações: dois amantes — tão jovens que ainda cheiravam a avisos de aula vaga — embalados na escada rolante, lábios entrelaçados como quem descobre o verbo “arder”. Talvez nem soubessem que existiam tempos em que um beijo podia custar o futuro inteiro. Ainda assim, eram prodígios de ternura, escrevendo com as mãos o manifesto que a minha juventude jamais pôde assinar.
Fiquei imóvel no degrau, um arqueólogo da própria falta. Me lembrei das dores sem prontuário que carreguei no peito, quando diagnósticos chamavam desejo de delito e a cura oferecida era o silêncio. Não éramos mártires, éramos apenas diferentes — e, ainda assim, tantos dos meus desapareceram como páginas arrancadas de um livro proibido. Cresci emocional e intelectualmente sob o signo da AIDS. Mas não esqueçamos. Hoje, mais de sessenta nações ainda mantêm esse índice de sombras. Insistem em classificar afetos como contrabando, como se o amor precisasse de passaporte para atravessar fronteiras de pele.
Aprendi cedo que algumas origens vêm sem espelho. Filhos reconhecem-se nos traços de quem os gerou: branco encontra branco, negro encontra negro, indígena reencontra mundos inteiros no rosto dos seus. Eu, não. Nossos amores nascem órfãos. Precisamos escolher parentes entre gestos, inventar genealogias no escuro. Somos letrados por uma sociedade que nos ensina primeiro a fugir e depois — só depois — a pronunciar o próprio nome.
Por isso, naquele breve cinema de escada rolante, senti uma inveja suave, quase educativa. Que esses meninos e meninas do presente tateiem seus corpos em plena luz, sob o metrônomo do transporte público, e chamem isso de rotina. Que o amor deles pareça tão simples a ponto de ser invisível — como a gravidade que mantém o mundo em eixo sem jamais se anunciar heroica.
De minha parte, sigo reaprendendo a tocar a superfície do dia. Trago no bolso uma fita métrica invisível: meço o aumento dos abraços sem culpa, calculo a distância entre o medo e a celebração, coleciono pequenas vitórias que não viram manchete. Quando consigo dar a mão a quem amo no meio da rua, mesmo que por segundos, crio uma fissura na moldura antiga da noite.
O futuro, dizem, é uma soma de descuidos. Talvez baste que nos descuidemos um pouco mais — que nos apoiemos no corrimão da existência e deixemos escorrer a velha ferrugem. Quem sabe, então, possamos subir a mesma escada, lado a lado, sem que ninguém precise fingir que o coração viaja clandestino dentro do peito.
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