FINADOS | O Peso do Infinito

É estranho, hoje, olhar pra nossa história e perceber que me tornei mais velho que você. Você parou nos 58, e aqui estou eu, aos 61, com um tempo que você nunca chegou a alcançar. Como é possível? Sempre foi meu irmão mais velho, quatro anos à frente, um guia firme e seguro. Sempre! Mas o tempo congelou para você naquele fatídico 2017. Para mim, atravessar esses anos tem sido um desafio constante, uma travessia onde carrego a sua ausência, e ainda assim, sigo em frente.

Por aqui, entre risos e lágrimas (sempre) veladas, continuo meu caminho, na maioria das vezes apenas divertindo gente, quase nunca chorando ao telefone. É engraçado, ou talvez irônico, mas a verdade é que faz tempo que não choro. Em algum ponto desse percurso, encontrei uma força que nem sabia que tinha. Aprendi a abraçar essa solidão que se faz cada vez mais presente. A vida me revelou isso aos poucos. Sim, vou confessar agora um segredo meu. Descobri que sou uma pessoa solitária. Como é possível viver tanto e, ao mesmo tempo, se sentir tão sozinho? A solidão tem um sabor agridoce, uma companhia que, mesmo indesejada, acaba se tornando familiar.

Porque, afinal, viver é um ato corajoso, e não é para amadores. Não existe manual, não há como se preparar. Cada passo é inédito, sem ensaios, sem garantias. A vida de verdade também não tem redes de proteção. A gente aprende com as cicatrizes, com os tropeços, fingindo que o medo não faz parte do nosso vocabulário. Mas ele está ali, insistente, acompanhando cada decisão, cada nova porta que escolhemos abrir. E ainda assim, eu vou em frente, fingindo coragem, engolindo os receios. Quem sabe um dia eu consiga enganar a mim mesmo e o medo, desavisado, vá embora.

E quando a saudade aperta, como agora, descubro outra estratégia para seguir. Apago as luzes, sintonizo meu Spotify numa playlist que traga Nina Simone, Leonard Cohen, Beatles ou Bach, fecho os olhos e finjo que está tudo bem. Mentalizo um caminho, um passo de cada vez, acreditando que o próximo vai ser mais fácil. As lembranças de você ficam ali, como um sussurro no meio de música, do barulho da vida, uma presença silenciosa que me acompanha. É estranho, mas aprendi a conviver com essa saudade, com a ideia de que o tempo parou para você, enquanto a vida me empurra para frente. Sigo. Apenas isso, sigo.

Amanhã faz sete anos que você desviveu. Como num passe de mágica, de repente, frágil, como um passarinho indefeso. Foi sumindo aos poucos, movimento a movimento. Primeiro se foram os gestos, depois a voz, sumiu a dor, até sumir a respiração. E então, você se foi. Indefeso e frágil, como se todo o vigor tivesse sido dissolvido na calmaria do adeus.

Amanhã é Dia dos Mortos, e aqui estou, cercado por meus fantasmas. Os ecos das lembranças dos meus pais, dos amigos queridos, todos que, como mágica, foram desvivendo ao longo do caminho. É curioso, quase trágico, como a ausência vai se acumulando dentro da gente, ocupando os espaços que antes eram de conversas, risadas e confidências.

Não me iludo, não acredito que estejam em algum lugar melhor que o nosso. Para mim, apenas deixaram de existir, como eu também deixarei um dia. E outros virão habitar nossas casas, se deitarão em nossos quartos, descobrirão nossos segredos e criarão novas histórias, enquanto as nossas irão se perder, silenciosas.

Mas agora é tempo de sentir saudade e isso é tudo o que me resta. É reconfortante saber que houve amor, que suportamos juntos tantas histórias, tão cheias de vida, e que ainda permanecem em mim, embora desbotadas como velhas fotografias. Essas memórias, que já não se lembrarão de mais nada, são o fio invisível que nos une, o vestígio daquilo que fomos e que, no fundo, ainda somos, apesar de tudo.

A saudade é um território silencioso, onde tudo o que resta é o eco do que vivemos. Esse eco, discreto e persistente, é a prova de que o tempo não apaga tudo, apenas muda a forma como carregamos nossas histórias. É curioso pensar que a saudade não precisa ser dolorosa, que ela também pode ser um lugar de encontro. É ali, nesse espaço de silêncio, que nos encontramos novamente, ainda que brevemente, com aqueles que desviveram.

E tá tudo bem, porque, enquanto houver lembrança, de certa forma ainda vivemos um pouco, nós e eles, desafiando o tempo, prolongando as nossas presenças. As memórias, esse fio que nos conecta ao passado, nos mantêm vivos no presente e se projetam no futuro, onde um dia outros lembrarão de nós com o mesmo carinho, com o mesmo assombro.

No fundo, a saudade é a maneira que encontramos para eternizar o que é passageiro. É uma forma de dizer ao tempo que não estamos prontos para esquecer. É, também, um gesto de amor — um amor que se recusa a morrer, que se espalha entre os dias e permanece ali, ainda pulsante, entre uma lembrança e outra. E assim, seguimos, carregando nossos amores no coração, transformando a ausência em presença, dia após dia, até que, um dia, nós mesmos sejamos saudade de alguém.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1773

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