Hoje, “Cinema e Psicanálise nas Brechas” completa um ano. Estou feliz. E afirmo isso com a alegria de quem acende uma pequena vela no meio do dia e, ao soprá-la, percebe que o gesto é maior do que parece. Há exatamente um ano, na 25ª edição das Satyrianas, reunimo-nos pela primeira vez não para fundar uma doutrina – longe disso –, mas para inaugurar um modo de olhar. Um jeito de escutar o mundo por dentro das suas fissuras, das frestas, das interrupções onde tantas vezes a psicanálise tradicional não ousou pousar.
“Psicanálise nas brechas” nasceu assim. Como quem se abaixa para ouvir o que ecoa debaixo das teorias, entre os silêncios, no intervalo das imagens. Para nós, as brechas não são falhas, mas passagens. São lugares onde vidas inteiras insistem em existir apesar das violências, dos apagamentos e do peso secular de vozes que vieram de longe, de um outro mundo, impondo pretensas universalidades. Foi ali, naquele encontro inaugural, que entendemos que a psicanálise pode – e deve! – caminhar para além dos seus próprios limites, abrindo espaço para os territórios colonizados, para as peles que carregam memórias feridas, para as histórias que nunca couberam nos manuais.
Eu me orgulho de fazer parte desse coletivo que, desde o primeiro dia, ousou aproximar arte e psicanálise com a delicadeza de quem junta duas mãos que já se desejavam. O cinema, sobretudo, tornou-se nosso aliado mais íntimo. Cada plano, cada corte, cada sombra nos devolve perguntas que, de alguma forma, já estavam esperando por nós. A arte nos ajuda a pensar subjetividades que não cabem em molduras, a enfrentar ideologias que atravessam o corpo e a escutar o que a história tentou silenciar.
Somos um grupo múltiplo, generoso e barulhento no melhor dos sentidos: Isildinha Baptista Nogueira, Ana Lucia Bastos, Bruna Elage, Lilian Carbone, Luciana Chauí, Patricia Villas-Bôas, Roberta Kehdy, Vera Lucia Barbosa e eu. Nossos nomes, juntos, formam uma espécie de trilha sonora. Cada um com sua cadência, seu timbre, seu lugar no coro.
E hoje, na edição de aniversário, celebramos, mais uma vez, com cinema. Esse lugar onde o inconsciente ganha corpo e as perguntas ganham imagem. Exibiremos o filme “Virginia e Adelaide” (2025), de Jorge Furtado e Yasmin Thayná. Um filme que acompanha a amizade improvável entre duas mulheres separadas por gerações, mas unidas pela urgência de reinventar suas próprias histórias. Virginia, uma intelectual negra que atravessou o país colecionando silenciamentos e resistências; Adelaide, uma jovem artista em busca de uma linguagem capaz de curar suas feridas mais antigas. Juntas, elas constroem um território afetivo onde memória, identidade e desejo se entrelaçam. Uma espécie de refúgio poético diante de um mundo que ainda insiste em classificá-las, reduzir suas potências, limitar seus futuros.
Para conversar sobre o filme, teremos a presença da atriz Lilian de Lima e da psicanalista Rosa Rodrigues, com mediação luminosa de Isildinha Baptista Nogueira. Porque não basta assistir. Épreciso atravessar o filme e deixar que ele nos atravesse, permitindo que suas imagens façam trabalhar aquilo que, em nós, ainda carece de nome.
Ao longo desse ano, aprendemos muito sobre o que significa praticar uma psicanálise que se implica no mundo. Uma psicanálise que reconhece Lélia Gonzalez e Frantz Fanon como faróis. Que sabe que o inconsciente não nasce no vazio, mas num território marcado por línguas, raças, violências, desejos, ancestralidades. Uma psicanálise que entende que o sujeito é atravessado pela história, e que não há clínica possível que não leve isso em conta.
Hoje celebramos. Não apenas o aniversário do coletivo, mas o gesto inaugural que nos uniu. A escolha de trabalhar nas fendas, de confiar que é ali, justamente ali, que as coisas começam a respirar. Celebramos também a beleza de estarmos juntos, construindo pensamento, criando espaço para novas existências, abrindo caminhos onde antes só havia limite.
Completar um ano é pouco e, ao mesmo tempo, imenso. Se há algo que as brechas nos ensinaram é que grandes transformações começam no mínimo. Num olhar que quebra uma lógica, numa conversa que desloca uma certeza, numa imagem que rasga o véu do óbvio. Hoje, é isso que festejamos. E seguimos. Atentos, curiosos, disponíveis. Porque as brechas continuam nos chamando.
E nós, que vivemos delas, seguimos respondendo com alegria. Viva as brechas!
