EVOCAÇÃO | A biblioteca dos afetos

Sou canceriano, desses raiz. Não é só uma questão de signo, mas de pele e memória. Trago comigo um coração que se reconhece nas marés. Ora cheio de abundância e ternura, ora retraído em silêncios. Sempre me soube apegado às tradições, à reverência aos antepassados, à escuta dos mais velhos que cruzaram meu caminho. No fundo, talvez o maior legado que carrego seja este. Saber que cada encontro é uma forma de eternidade.

Ao longo da vida, muitos chegaram a mim – ou se aproximaram mais – justamente quando se despediam do mundo. Phedra D. Córdoba, Alberto Guzik, Paulo Autran, Norma Bengell, Emilio Di Biasi, Fernando Peixoto, Irene Stefania, Antonio Abujamra. Com todos eles construí laços fortes, pouco antes de suas partidas. E cada um deles deixou rastros de amor, cumplicidade e criação. Muitos confiaram ao palco dos Satyros seus últimos sonhos, como quem deposita nas tábuas da cena a certeza de que a vida continua no olhar dos outros. Phedra foi velada ali, imagine só. O palco transformado em altar, despedida e celebração.

Agora, ao me preparar para atuar na comissão examinadora de uma defesa de doutoramento sobre Abujamra, reencontro todos esses fantasmas luminosos. Lendo trabalhos acadêmicos sobre o velho provocador, sinto como se meu escritório se enchesse de vozes, risos, debates. Mas não os encontro em seus crepúsculos. Eu vejo cada um deles em juventude, repletos de energia. É um milagre. O tempo se dobrando sobre si mesmo e eles surgindo, de repente, como se a morte tivesse apenas ensaiando uma cena.

O tempo, esse personagem implacável, nos empurra para a finitude. Mas talvez o segredo esteja em reconhecer que ele também nos dá a chance de guardar. Guardar livros, histórias, lembranças, bibliotecas inteiras. Eu me tornei guardião da biblioteca de Abujamra. Não é só um acervo de títulos, mas um relicário de escolhas, de obsessões, de curiosidades. Como quem recebe o coração de alguém em herança. E eu sei da responsabilidade. Sinto o peso e a leveza desse gesto.

A cada nome que lembro, a cada rosto que retorna, descubro que o tempo não é apenas contagem regressiva, mas também invenção. Somos feitos daquilo que lembramos e daquilo que ainda insistimos em partilhar. A finitude é inevitável, mas o tempo, generoso, nos permite transformar ausência em presença, morte em memória, saudade em amor.

É isso. Talvez sempre tenha sido só isso. No fim, não carregamos nada. Apenas memórias: guardiões passageiros de bibliotecas de afetos.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1922

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