Eu, pecador

Quando eu vivia em Lisboa, amava passear por suas ruelas nos finais de tarde, principalmente no verão. O pôr do sol da cidade é das coisas mais inacreditáveis que já vi. Aliás, Lisboa é afamada por sua luz, especialmente entre primavera e verão.

Nestes passeios, descobri coisas inacreditáveis, conheci pessoas incríveis e vivi situações que até Deus duvidou. Mas teve uma que jamais esquecerei.

Caminhava pela Mouraria, bairro ao pé do Castelo de São Jorge, numa das sete colinas da cidade, quando me aproximei da igreja de Santo Antonio, que fica na encosta do monte, um lugar realmente mágico. Havia uma imensa fila em sua entrada e, antes que fizesse qualquer pergunta, ouço uma voz:

— Você também veio ver a relíquia de Santo Antonio?

Era uma senhora muito velha, vestida de preto. Não entendi muito bem sua questão e, curioso – não tendo a mínima ideia do que seria uma “relíquia” –, disse que sim e me pus na fila. Aliás, sempre tenho muita curiosidade em saber o que acontece nas filas que se formam de maneira contingente, eventual. É comum eu me colocar a postos nestas situações. Sou realmente intrometido.

A fila, composta basicamente por mulheres que rezavam entre o histerismo e o fervor, andava rapidamente. Enquanto fingia uma reza, quase não cabia em mim de tanta excitação. Afinal, o que significaria aquele negócio de relíquia a que se referiu a senhora de negro?

Não tardou e já me encontrava próximo ao altar. Notei que havia um padre que segurava alguma coisa entre as mãos e, na medida em que as pessoas da fila iam se aproximando, um outro sacerdote pegava uma das mãos destes indivíduos que tocavam o objeto sustentado pelo primeiro.

A maioria deles, já na terceira idade, chorava. Era fácil perceber que havia ali uma histeria coletiva. Quando chegou a vez da senhora à minha frente, ela desmaiou, enquanto era socorrida por algumas pessoas que estavam por ali. Meu coração acelerava e minha abelhudice não cabia em mim.

Enfim, chegou a minha vez. Enquanto um dos padres, impaciente e também muito idoso, apressava-se em puxar minha mão, colocando-a em cima de algo que o meu tato não reconhecia, eu me assustava. Meu coração estava acelerado e meu corpo tremia. Segurei firme, enquanto o padre, aos berros mesmo, me pedia para que soltasse o tal objeto. Mas tudo ali foi tão, mas tão rápido que quando abri minhas mãos, largando o que segurava, algo se espatifou no chão.

Confusão geral. Os padres ralhavam comigo, na medida em que seus auxiliares apressavam-se em recolher do chão um monte de pequenas coisas que eu não conseguia distinguir. Por um lapso de segundo, fiquei ali parado, sem saber o que fazer. Algumas pessoas começaram a me xingar. Em coro, repetiam uma só palavra que eu demorei um tempo pra entender:

— Herege, herege!

Saí da igreja correndo e totalmente perturbado, sem inferir absolutamente nada do que se passara. Só no dia seguinte fiquei sabendo, pelos jornais, o que de fato se passara naquele final de tarde inesquecível. Eu havia derrubado a relíquia de Santo Antonio. Na verdade, pequenas partes do corpo do santo nascido em 1195.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1785

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