Entenda a relação entre as duas datas e a importância da arte circense e teatral para a cultura brasileira
Por Beatriz Magalhães
27 mar 2024, 09h00
O dia 27 de março é marcado por uma celebração conjunta: o Dia Mundial do Teatro e o Dia Nacional do Circo. Duas formas de arte que desempenham papeis significativos na história da humanidade.
Não há como falar da magnitude dessas celebrações sem resgatar o contexto histórico de cada uma. O teatro, em sua forma mais primórdia, remonta às civilizações antigas, mais especificamente na Grécia Antiga, por volta do século VI a.C., onde utilizavam as artes dramáticas como meio de entretenimento, expressão cultural, além de realizarem encenações em homenagem aos deuses.
Ao longo dos séculos, o teatro se adaptou e se reinventou, cruzando fronteiras e se manifestando em diferentes culturas, de acordo com suas influências. Na Idade Média, as peças religiosas dominavam os palcos, enquanto o Renascimento resgatou o teatro clássico grego e romano. Já o Iluminismo trouxe consigo um formato mais reflexivo e questionador, e o século XIX foi marcado pelo romantismo e pelo melodrama.
No Brasil, essa manifestação artística teve seu início no período colonial, com peças de caráter religioso. No século XIX, a dramaturgia nacional ganhou força com autores como Artur de Azevedo, Martins Pena, João Caetano e Gonçalves de Magalhães – além da manifestação de elementos pré-teatrais pelos povos africanos e indígenas brasileiros – até chegarmos ao século XX, onde se modernizou – e diversificou – trazendo à vida movimentos como o Teatro Oficina e o Teatro de Arena.
A arte como ferramenta de transformação
Comemorado anualmente em 27 de março, o Dia Mundial do Teatro foi criado em 1961 pelo Instituto Internacional do Teatro (ITI) da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), com o objetivo de celebrar a importância da arte teatral para a sociedade.
É um momento para pensar nessas questões e saudar nosso amor e dedicação por essas efemérides. No caso do Teatro, é fundamental que a gente brinde e pense a respeito. É uma expressão tão pequenina, tão sensível, como estrutura e como profissão, que temos que saudá-la toda hora. É preciso lembrar quem somos, porque estamos fazendo teatro – e sendo teatro.
Ivam Cabral, Diretor Executivo da SP Escola de Teatro
A data mundial divide uma feliz coincidência com o aniversário do brasileiro Abelardo Pinto, o famoso Piolin, que nasceu em 27 de março de 1897, em Ribeirão Preto. Abelardo se envolveu com o mundo circense desde cedo, inspirado por seu pai, Galdino Pinto, dono do Circo Americano.
Seu sonho era ser engenheiro, por outro lado, aos 10 anos de idade já trabalhava no circo como contorcionista. Alguns anos depois, virou trapezista, até se tornar palhaço, com o personagem que fazia uma representação caricata dos aristocratas do início do século XX, onde usava longos sapatos, luvas maiores do que as mãos, roupas com colarinhos grandes e uma bengala em referência aos cavalheiros da época.
Já o nome ‘Piolin’, veio por meio de um apelido que artistas espanhóis que trabalhavam na companhia de seu pai. A palavra significa barbante, em espanhol, e os amigos europeus passaram a chamá-lo assim pois diziam que suas pernas eram muito finas. O legado.
Se lá atrás, o circo teve suas origens em tradições populares e festivais de diversas culturas ao redor do mundo, como os festivais da Roma Antiga e os espetáculos de acrobacias e malabarismo na China antiga. No Brasil, o espetáculo circense trouxe seu caráter nômade, que ficou conhecido como “circo de cavalinhos”, devido às acrobacias equestres, e foi buscando se adaptar ao cenário brasileiro.
Por trazer em seu cerne um caráter híbrido, plural e dinâmico, não demorou muito para que a arte circense caísse no gosto da população, especialmente por dar grande ênfase aos movimentos feitos por mímica, atitudes e expressões faciais, fazendo com que a performance corporal e acrobática se tornasse uma das principais características do gênero.
No final do século XIX, com essa efervescência artística, passou a acontecer uma ligação ainda maior entre as linguagens cênicas, ocasionando no surgimento do circo-teatro – circos de grande porte que eram semifixos e faziam temporadas de apresentações de longa duração nas cidades.
Com isso, a presença dos diálogos nas apresentações passou a ser implementada, trazendo apresentações mais voltadas para a emoção da recepção, do que no impacto visual. Ou seja, as temáticas populares brasileiras passaram a criar representações de peças teatrais. Geralmente, as companhias dividiam o espetáculo em duas partes: a primeira com uma apresentação de números já conhecidos, como mostrar destreza física ou dominar animais selvagens e num segundo momento, a peça de teatro.
O papel de democratização da cultura neste período, fez com que boa parte da população que não tinha acesso aos espetáculos, que geralmente aconteciam nas capitais, passasse a apreciar e reconhecer a importância do teatro para o país.
Entenda a relação entre as duas datas e a importância da arte circense e teatral para a cultura brasileira
“A Vida na Praça Roosevelt”, 2005. Foto: Acervo SatyrosA estratégia era de levar ao público as apresentações que queria ver, e por outro lado, criar essa desejabilidade para que as pessoas quisessem ver o que o circo estava criando. Muito além de um espetáculo de entretenimento, as artes circenses e teatrais representam um espaço de cultura, tradição e transformação.
“O que nos diferencia dos outros seres vivos da natureza, do mundo natural, é o poder da reflexão. Temos a reflexão sobre a imaterialidade, o abstrato da vida. Conseguimos relativizar essas questões. Você mede uma cultura de um povo a partir da educação do povo, e a educação é um lugar de acesso, ninguém tira. É o único caminho que pode transformar e fazer com que tenhamos uma relação crítica com o mundo”, relata Ivam Cabral, Diretor Executivo da SP Escola de Teatro.
“Reverencio sempre a arte e acho que o circo sempre foi irmão gêmeo do teatro. O circo como conhecemos sempre saudou e levou o teatro para suas arenas”, ressalta o ator. Apontado por Paulo Autran como um dos mais talentosos atores de sua geração, Ivam atuou em obras como “Killer Disney“, “Os Cantos de Maldoror“, “Kaspar“, e também é autor de textos como “A Herança do Teatro” e “Pessoas Perfeitas“, com Rodolfo García Vázquez, da qual receberam o Prêmio Shell de Melhor Texto, Prêmio Aplauso Brasil de Melhor Texto e Prêmio APCA de Melhor Espetáculo.
O Teatro e a força da dramaturgia
Ivam nasceu e cresceu no Paraná, em meio a uma família de 6 irmãos, seu pai era pedreiro e a mãe não sabia ler nem escrever. O dramaturgo conta que ‘comia o que plantava’, e que, apesar de ter tido uma infância sem muitos acessos, recebia grande incentivo para buscar a emancipação por meio da educação.
No início da vida acadêmica, cursava Administração e chegou a trabalhar na Bolsa de Valores do Paraná, entretanto, no último ano da graduação, resolveu largar o curso e iniciar do zero outra formação. Ao se deparar com o anúncio de vestibular do primeiro curso de Artes Cênicas no Paraná, pela PUC, decidiu se jogar de cabeça em um novo desafio. “Foi transformador. Mudou minha vida por completo. São 35 anos de teatro profissional. O teatro me deu tudo que eu tenho, me levou pra conhecer o mundo, me moldou e educou”, comenta ele de peito aberto.
O contato com o teatro começou logo na infância, quando sua mãe fazia leituras coletivas depois do jantar e sua reação era de encenar o que tinha lido como forma de um exercício lúdico. Durante a adolescência, enquanto morava no centro da cidade, chegou a residir ao lado do Teatro Guaíra, o único em Curitiba, e viu sua relação com a arte se estreitar ainda mais. Os anos se passaram, e sua carreira teatral seguiu um longo percurso.
“Nessa época, em 1989, Curitiba só tinha um teatro, que era o Teatro Guaíra – e não tinha uma produção profissional de teatro. Passados 35 anos, esse quadro é completamente outro. Hoje a cidade é outra. Um jovem que se profissionaliza em Curitiba, não precisa sair de lá”. O ator enfatiza que após a formação, seu plano era de criar uma companhia, entretanto, não via possibilidade para isso até então. Ao chegar em SP, conheceu Rodolfo García Vázquez, por meio de uma seletiva de atores, e o encontro resultou na criação da Companhia de Teatro Os Satyros, no dia 1º de abril de 1989.
“Sou uma prova viva de que é possível fazer e viver de teatro. É possível ter dignidade no teatro, é possível abraça-lo, sentir-se teatro, ser teatro”, enfatiza o ator. Por outro lado, também relembra a importância de não romantizar a profissão: “Ainda precisamos fazer muita coisa para tenhamos alguma segurança e possibilidade para poder desenvolver nosso trabalho, continua sendo muito difícil.”
A importância das iniciativas como preservação da tradição circense e teatral
Segundo dados de pesquisa do Sistema de Informações e Indicadores Culturais (2011-2022), divulgados pelo IBGE, apenas 23,3% municípios brasileiros possuem teatros e casas de espetáculos. O cenário das artes teatrais no Brasil vive um momento delicado, marcado por uma profunda crise que se manifesta em diversos aspectos: a escassez de recursos, a desvalorização profissional, a dificuldade de acesso à cultura e a migração de talentos para outras áreas.
Mario Lemes, estudante na Escola de Teatro Macunaíma, ressalta a preocupação com o setor: “A cultura no geral é muito pouco valorizada no Brasil. Um país sem sua própria cultura é apenas um pedaço de terra com divisórias imaginárias. Pra piorar, nós tivemos meia década de retrocesso no pouco que tínhamos nas políticas públicas de incentivo, tanto ao teatro quanto a outras formas de produção cultural. Hoje em dia, viver da cultura é um risco. Adoraria viver só de Teatro, mas, mesmo depois de formado, a verdade é que não tenho certeza nenhuma sobre uma possível carreira nessa área”.
Atualmente, a principal ferramenta que viabiliza projetos do setor é a Lei de Incentivo à Cultura, conhecida como Lei Rouanet. Para o próximo ano vigente, algumas mudanças que visam democratizar o acesso aos recursos, aumentar a transparência e fortalecer a gestão dos projetos foram implementadas, como: menor tempo de análise das propostas, caindo de 60 para 30 dias; Inclusão de projetos de bienais, festivais, mostras e óperas no teto máximo de R$ 10 milhões; novo sistema também promete ser menos burocrático, pois compartilha os dados da Receita Federal, reduzindo os cinco formulários que antes era necessários.
“Fico imaginando quantas Fernandas Montenegro estamos perdendo por não incentivarmos pessoas mais pobres a desenvolver essa aptidão.“, complementa Mario.
As mudanças na Lei Rouanet são recentes e seu impacto ainda está sendo avaliado. As medidas podem facilitar o caminho de democratizar o acesso aos recursos, aumentar a transparência e fortalecer a gestão dos projetos, entretanto, é preciso que cada vez mais esferas e programas se alinhem com o compromisso de promover a cultura e a educação.
A arte é uma potente ferramenta transformadora, e nem sempre teremos todas as respostas na mão para usá-la, como ressalta Ivam. “Contradizendo Shakespeare, o mais importante é não estar pronto. Não tem uma faculdade ou curso que vai te preparar para o mundo. Quanto menos pronto, mais desafio e assim você poderá trabalhar com a complexidade do que poderá vir, ser e existir. O mundo é aquilo que ainda não foi criado. Tem coisas que só a vida te prepara”.
A arte circense e teatral segue pulsante e viva, e apesar de tantas tentativas de recursos que são frequentemente contingenciados, não há como parar as transformações inerentes de quem respira teatro.
“Dominar a linguagem do Teatro é dominar um meio pra contar sua visão de mundo, suas histórias. Quanto mais pessoas tiverem essa possibilidade, mais acesso a diferentes realidades todo mundo vai ter. O mesmo vale para cinema, literatura, televisão: se as mesmas pessoas continuarem dominando esses meios, estaremos fadados a ouvirmos sempre as mesmas histórias”, complementa Mario.
Fonte: Bravo!