Já que falamos de cartas, me lembrei hoje que eu também amo escrever bilhetes. Pra tudo. Qualquer coisa já estou escrevendo um bilhete. Mas escrevo também para deixar um aviso, para fazer graça, para me declarar. Minhas primeiras investidas amorosas, ainda na adolescência, foram através deles. Pedaços de papel dobrados com cuidado, letras tortas, promessas tímidas e sempre um pouco de exagero. Até hoje sigo escrevendo. Às vezes, transformo os bilhetes em cartões. Quando envio flores, por exemplo — e eu adoro mandar flores para quem amo —, tem sempre um cartão junto. E esses, confesso, me dão mais trabalho do que qualquer crônica. Porque, se existe um território onde a pieguice adora se esconder, é num cartão.
Passei o dia pensando em bilhetes porque, hoje, reencontrei um do Ricardo, meu sobrinho, filho da minha irmã Irani. Fiquei ali, com o papel nas mãos, pensando sobre eles, os bilhetes. Esses pequenos gestos que atravessam o tempo com a delicadeza de quem entende que, às vezes, o afeto precisa de uma embalagem simples. O bilhete veio acompanhado de um CD, onde ele gravou sete canções para mim e para o Rodolfo. No papel, nos desejava um feliz Natal. A data: 30 de novembro de 2017. Um gesto pequeno, mas com a força que só os afetos urgentes têm. O jeito que ele encontrou para se despedir de nós antes de partir. No início de dezembro, Ricardo se mudou para Barcelona, onde viveu por alguns anos.
E então me lembrei daquele fatídico 2017. Um desses anos que desafiam qualquer tentativa de equilíbrio emocional. O ano em que minha família encolheu. Perdemos o Dimi, meu irmão. O quarto dos seis filhos dos meus pais. Eu, ele e o Claudio, o caçula, crescemos juntos. Fizemos de tudo juntos, sobretudo viajar. O Dimi era um homem de movimento. Bastava o calendário abrir uma brecha e lá estávamos nós: estrada, malas, aeroportos, mapas. Um tipo de alegria que só quem ama partir conhece.
Mas aquele 2017 foi implacável. Em janeiro, o diagnóstico. Em novembro, a morte. Um intervalo curto, sufocante. Um tempo em que fomos obrigados a aprender, à força, o vocabulário da despedida.
Ricardo decidiu viajar quando nossas casas ainda estavam cheias de silêncio. Mas eu sempre soube: a partida dele era de outra ordem. Um exílio. Um exílio voluntário. Aos trinta e dois anos, resolveu viver um tempo fora do Brasil. Escolheu Barcelona, como quem escolhe no mapa um lugar onde a vida pudesse respirar de outro jeito. Não foi exatamente uma decisão planejada com muita antecedência. Foi um desses impulsos que nascem da mistura de dor e desejo de reinvenção. O processo do Dimi foi difícil para todos nós, mas especialmente para o Ricardo, que era vizinho do Dimi. Ele assistiu tudo de perto, dia após dia, sem conseguir fazer o que, no fundo, ninguém podia: deter o que já era inevitável.
A seleção de músicas daquele CD foi feita com o cuidado de quem sabe que há coisas que só podem ser ditas com música. Eram estas:
“Meu Mundo é Hoje (Eu Sou Assim)”, com Paulinho da Viola.
“Tristeza do Jeca”, na interpretação de Yamandu Costa.
“Mistério do Planeta”, dos Novos Baianos.
“El Justiceiro”, com Os Mutantes.
“Meu Esquema (Ao Vivo)”, do Mundo Livre S/A.
“Por Causa de Você, Menina”, com Jorge Ben Jor.
E “Up From The Skies (Live)”, na voz de Gilberto Gil.
Uma seleção que parecia desenhar, com acordes e silêncios, uma espécie de retrato afetivo de nós três: ele, eu e Rodolfo. Curioso, porque eu e Rodolfo nunca tivemos um gosto musical comum. Somos de margens opostas quando o assunto é playlist. Mas ali, naquela pequena lista, havia um diálogo inesperado. Gil, Novos Baianos e Mutantes falavam diretamente ao Rodolfo. Mundo Livre S/A, Novos Baianos, Yamandu Costa e Paulinho da Viola, a mim. E Jorge Ben Jor flutuando no meio, como uma ponte sonora entre dois mundos.
O CD ficou por muito tempo dentro do meu carro. Tocava em loop, como se cada faixa fosse um jeito de manter o Ricardo por perto, mesmo a milhares de quilômetros de distância. Depois, a seleção virou playlist no meu Spotify. E, de vez em quando, ainda coloco para tocar, como quem acende uma vela por motivo nenhum, só pra que a memória ilumine um pouco a sala.
Semana passada, o Ricardo esteve me visitando. Foi bonito. Agora ele é um homem ainda mais inteiro, com as cicatrizes e os brilhos que os anos fora do país deixaram nele. Músico, compositor, cantor. Um artista de mão cheia. E, ao mesmo tempo, executivo. Divide seus dias entre reuniões corporativas, ensaios e os quilômetros percorridos em sua moto grandona, dessas que ocupam espaço e exigem respeito nas ruas.
Conversamos muito. E foi bonito. Toda vez que ele falava, eu olhava pra ele e pensava na estranha geometria que o tempo desenha entre as pessoas. Lembrei dos bilhetes, dos cartões, das flores, da playlist, do CD que sobreviveu no porta-luvas.
E, no fundo, entendi mais uma vez aquilo que a vida insiste em me ensinar: a gente segue inventando jeitos de dizer o que sente. Mesmo quando não sabe direito como dizer. Mesmo quando as palavras parecem tímidas, insuficientes ou perigosamente próximas da pieguice que tanto me acompanha. Inventamos com um olhar, com uma música gravada num CD, com um silêncio demorado ou com um bilhete dobrado às pressas antes de partir.
Puxa vida, meu amado tio. Cai em lágrimas ao ler essa sua crônica. Um filme passou pela minha cabeça, e me fez perceber como a vida é cheia de poesia. Essa semana que passamos juntos foi muito importante para mim. Você me fez despertar novamente para a minha criança interior. Aquela de uniforme azul e branco, que encontra o alegria e afeto em uma mordida de pizza num Sábado a noite, falando sobre o que existe além das estrelas. Te amo!