CRÔNICA | João que chegou aos 21 anos

Hoje vivi um daqueles encontros que suspendem o tempo e o fazem respirar mais devagar.

Há alguns dias, recebi uma mensagem de Bráulio Mantovani, dizendo que o filho gostaria de visitar a escola para conhecer a biblioteca, especialmente os livros que Chris, sua mãe, doou e que, desde sua morte, repousam entre nossas estantes como testemunhas silenciosas de uma vida que segue dizendo.

Bráulio me escrevia com delicadeza, num tom de suave atenção, contando o desejo do filho de se aproximar desse acervo. E acrescentou, quase como quem revela um segredo bonito: “João já chegou aos 21 anos e está no terceiro ano de audiovisual na ECA.”

Pensei no tempo. Na rapidez do tempo. Nas suas trapaças também. Quando Chris morreu, João tinha apenas sete anos. E, de repente, aquele menino que eu lembrava, com o rosto ainda aberto para o mundo, tornara-se um homem.

Li a mensagem com um leve sobressalto, desses que chegam quando a memória se ergue e volta a habitar o corpo. Escrevi a João e ele respondeu quase de imediato, com a pressa dos jovens que ainda acreditam que o futuro é um lugar possível.

Combinamos de nos encontrar.

E hoje, quando o vi atravessar o portão da escola, senti que algo sagrado se insinuava no ar. Como se, por um instante, o tempo se curvasse, e o passado estendesse a mão ao presente para lembrar-nos de que certas presenças nunca se vão.

Chris Riera foi uma mulher de luz própria. Dramaturga de raro talento, crítica aguda, pensadora refinada. Formada em Letras, doutora em dramaturgia e crítica dramática por Yale, viveu sete anos nos Estados Unidos, escreveu para o Village Voice e colaborou com a Folha de S.Paulo. Morreu jovem, em maio de 2012, aos 44 anos, quando a vida parecia ainda se abrir como uma página em branco. Deixou centenas de livros. Volumes de teatro, cinema, filosofia, história da arte e crítica, muitos em inglês, alguns sublinhados, outros com anotações nas margens, como se ainda quisessem conversar com quem os abrisse.

Esses livros hoje habitam nossa biblioteca, na sede Brás da SP Escola de Teatro. Não são apenas objetos. São pulsos de uma inteligência em movimento, fragmentos de uma presença que continua a respirar entre as estantes. E ver o João diante deles foi como assistir à própria vida encontrando uma forma de permanecer. Ele caminhava curioso, olhos abertos, vibrando diante de cada detalhe. Havia nele uma ternura discreta, uma espécie de reverência e, ao mesmo tempo, aquele brilho inquieto que reconheci. O mesmo da mãe, o mesmo desejo de compreender o mundo pelas palavras e pelas imagens.

Percorremos a escola, mostrando a João as salas de cenografia, o ateliê, a maquinaria, o acervo de Antonio Abujamra – de que também somos guardiões. Ele ouvia tudo com atenção, encantado com o pulsar de um espaço que respira arte e humanidade. Em certo momento, o silêncio se fez. E nesse silêncio, senti Chris ali, presente. Como um sopro que passa, uma lembrança que sorri. Pensei nela, orgulhosa, vendo o filho ali, tocando os livros que um dia lhe ensinaram a pensar, a sentir, a imaginar.

Há algo de misterioso nesse ciclo. Uma mãe dramaturga, um pai roteirista, um filho cineasta. O verbo e a imagem. O texto e o plano. A palavra e o enquadramento. O acervo e o futuro. Tudo se entrelaça num mesmo gesto de amor, arte e permanência. Como se a criação, em suas múltiplas formas, fosse apenas uma maneira de continuar vivendo através do outro.

Quando João se despediu, seus olhos ainda guardavam um brilho. Talvez a compreensão silenciosa de que o destino, às vezes, é uma linha contínua escrita a muitas mãos. Saímos da biblioteca e, por um instante, tive a impressão de que Chris caminhava conosco. Leve, invisível, viva. Como só os livros e o amor sabem ser.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1934

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