Desde o ano passado, participo de um grupo chamado ColetivA Psicanálise nas Brechas. Somos nove psicanalistas. Oito mulheres e eu. Há algo de bonito nessa desproporção. É como se eu estivesse sempre cercado por uma sabedoria que não me pertence, mas que me atravessa. O grupo se move como um organismo vivo. Entre leituras, filmes, conversas e silêncios. Uma das nossas atividades é o Cinema e Psicanálise nas Brechas, que acontece todo mês no Cine Bijou – Sala Patricia Pillar. Um espaço antigo, reanimado por corpos pensantes. Em novembro, levaremos nossas inquietações ao Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, no seminário “Por uma psicanálise decolonial – Tropeços e linhas de fuga”. Nome bonito, não? Há tropeços, sim. E há fugas também. Mas o que mais há é desejo. De pensar, de abrir frestas, de deixar o ar entrar.
Na SP Escola de Teatro, onde trabalho há tantos anos, o cenário é parecido. Sou ancorado por mulheres. As que me sustentam nos dias mais difíceis têm nome: Elen Londero e Cibele Custódio. Foram elas que, junto comigo, desenharam modos de existir dentro de uma instituição que respira arte e, também, respira política. Ali, a presença feminina é maioria. Na pedagogia, na recepção, no administrativo, na biblioteca, no oportunidades. São elas, na grande maioria mulheres, que abrem caminhos e seguram o chão. Na gestão administrativa/financeira, quem conduz é Leila Lopes, mulher negra, competente e afetiva. E neste momento, procuramos outra mulher negra para assumir uma das coordenações. Porque a presença não basta. É preciso que ela também se multiplique, se expanda, se inscreva como estrutura.
Na Adaap, instituição que abriga a escola, o conselho que me rege é majoritariamente feminino. Das doze cadeiras, sete são ocupadas por mulheres: Isildinha Baptista Nogueira, Eunice Prudente, Elen Londero, Helena Ignez, Maria Bonomi, Patricia Pillar e Rachel Rocha. Duas delas, Isildinha e Eunice, são mulheres negras. E Isildinha, essa força doce e precisa, preside o nosso conselho de administração. É bonito ver como a história vai se corrigindo, ainda que lentamente, ainda que tropeçando.
Talvez isso tudo tenha começado lá atrás, muito antes de mim. Venho de uma formação matriarcal. As mulheres, em minha vida, nunca foram coadjuvantes. Elas definiram meu trajeto pessoal, afetivo e profissional. Meus melhores amigos são mulheres. Minha analista é mulher. As professoras que me alfabetizaram eram mulheres. As artistas que me formaram no teatro, também. As que me salvaram, também, sempre foram mulheres. Sempre estão ali, ao lado, quando o chão balança. Inclusive neste momento. Elas me pegam no colo e me curam.
Na gestão da escola, fiz questão de transformar essa admiração em política concreta. Lembro-me de quando, por lei, a licença-maternidade era de apenas quatro meses. Foi preciso insistir, argumentar, convencer. E conseguimos aprovar, em nosso conselho, seis meses de licença para elas. Hoje, isso é um direito consolidado. Mas sigo insistindo. Quero agora que seja de um ano. Falamos disso na última reunião. Ainda não há aval jurídico, essas pautas são lentas, cheias de papéis e resistências. Mas eu sigo. Porque o tempo da mudança é outro. O tempo de agora é do cuidado.
Escrevo tudo isso hoje porque às vezes é difícil olhar para dentro e separar o real da fantasia. Há quem diga que o mundo muda por vontade, mas não é verdade. O mundo muda com concretude, com gestos pequenos, com ações diárias. Muda quando uma mulher ocupa um cargo de direção, quando uma licença se estende, quando um grupo de oito mulheres e um homem se reúne para pensar psicanálise e decolonialidade. Muda quando as estatísticas são reformuladas.
Viver é, afinal, uma forma de luta. E estar cercado de mulheres, para mim, é a forma mais bonita de resistência. Elas me lembram, todos os dias, que a força pode ser delicada, que o poder pode ser partilhado e que o amor, em sua forma mais política, é sempre um gesto de cuidado.