CRÍTICA | Teatro digital: ‘A Arte de Encarar o Medo’, uma aventura estética contra o fascismo e a necropolítica

Pensada para o suporte digital e transmitida via Zoom, A Arte de Encarar o Medo, dos Satyros, inaugura o teatro digital e explora uma nova linguagem artística durante a pandemia

por Clayton Melo

Em Star Wars, a Millennium Falcon acessa o hiperespaço e acelera brutalmente para chegar mais rápido a outras galáxias. A pandemia do novo coronavírus é mais ou menos como a espaçonave icônica pilotada por Han Solo e com Chewbacca como copiloto: ela é uma aceleradora de futuros, é aquela pisada abrupta no pedal que ajuda a distribuir melhor o futuro, parafraseando William Gibson, o escritor ciberpunk que dizia que o futuro já chegou, só não está uniformemente distribuído.

É esse futuro que agora chega às artes cênicas com A Arte de Encarar o Medo, espetáculo digital pioneiro escrito por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, fundadores da Cia de Teatro Os Satyros.

Trata-se de um marco: o trabalho inaugura o teatro digital no Brasil – e talvez não seja exagero dizer que também no mundo. Todo pensado para o suporte digital, ele foi escrito, produzido, ensaiado e encenado a distância. As apresentações são ao vivo via Zoom e com os 18 atores do elenco atuando de suas casas por causa da quarentena – dois dos artistas moram fora do Brasil, um em Portugal e uma na Suécia. A peça digital estreia no dia 13 de junho, e os ingressos podem ser comprados por meio deste link no Sympla.

A Arte de Encarar o Medo se passa num futuro distópico, com as pessoas tentando reconstruir histórias de uma vida anterior à pandemia. Em quarentena há 5.555 dias, isoladas e angustiadas, essas pessoas criaram um grupo na internet para se conectar. Esses amigos não entendem como ainda existe energia elétrica e acesso à web, porque as emissoras de televisão e os jornais deixaram de existir e as cidades foram abandonadas. A depressão, a solidão, o medo do contágio, a angústia pela proximidade da morte e o desespero diante dos ataques diários contra a democracia brasileira perpassam as cenas do espetáculo.

 

Nova linguagem artística

A peça digital (não sei se é uma peça, mas isso é o que menos importa neste momento) é inovadora, entre outros motivos, também porque não se limita a transpor para o novo ambiente uma encenação concebida para o palco. Antes, ela abre novas veredas para o teatro na era digital, transformando a precariedade e a impossibilidade provocada pela quarentena em impulso criativo para explorar uma nova linguagem artística, forjada no éthos dos pixels e totalmente à vontade para se moldar às janelinhas do Zoom.

Os estudos dos Satyros sobre a relação entre teatro e tecnologia não vêm de hoje. São exemplos de espetáculos que investigam essa interação Cabaret Stravaganza, de 2011, e o projeto E Se Fez a Humanidade Ciborgue em 7 Dias, composta por sete peças, em 2014. Mas essas pesquisas nunca tinham levado o grupo a enveredar por um projeto totalmente pensado para o suporte digital. O que havia era a incorporação dos resultados dessas pesquisas nas encenações do grupo em seus teatros na Praça Roosevelt ou nas viagens por outras cidades e até mesmo países.

A quarentena foi o gatilho que faltava para a invasão digital. Com a impossibilidade do trabalho presencial, Ivam e Rodolfo começaram a pensar novos caminhos virtuais, e assim nasceu A Arte de Encarar o Medo.

“Não que tenha sido algo natural pensar um processo de teatro para as plataformas digitais, pois houve um grande esforço de todos nós para esse salto”, diz Rodolfo ao A Vida no Centro.  “Mas são questões com as quais a gente já vinha lidando. Por isso foi um grande salto e ao mesmo tempo também algo natural pra gente pesquisar esse caminho e, principalmente, não se apegar a preconceitos nem ideias pré-concebidas”, diz o diretor do espetáculo.

Rodolfo se refere a uma discussão que se deu em alguns círculos teatrais, depois das apresentações iniciais de A Arte de Encarar o Medo, sobre se o espetáculo seria ou não teatro. “O que trava muito as pessoas é a maneira como elas enxergam o mundo. Os conceitos e pré-conceitos que elas criam a respeito do seu próprio trabalho como artista ou de como deve ser o trabalho de um artista”, diz. “No nosso caso isso não aconteceu. Uma plataforma digital – o Zoom, por exemplo – pode ser um caminho para nossa expressão artística. A gente não foi com preconceito para esse ambiente. A gente entendeu como uma aventura estética”.

 

Aventura estética

E esta aventura estética é inventiva e tocante, não apenas pelo fato de a experiência ser suportada no ambiente digital, mas também por adentrar o novo zeitgeist gerado pela pandemia. O espetáculo fala de nossas angústias diante das incertezas quanto ao futuro distópico pós-pandemia. A intenção de Ivam e Rodolfo era discutir a vida na quarentena, o impacto do coronavírus na sociedade e o duro momento político brasileiro. Assim, questões como medo e solidão e as ameaças totalitárias e de cerceamento das liberdades foram discutidas durante o processo criativo com os atores – sempre a distância.

Os ensaios foram todos digitais. No início, havia dúvidas no elenco se esse projeto daria certo ou para onde estavam indo com essa coisa toda de processo criativo via Zoom.  “Mas, a partir de um certo momento, estávamos todos tão mergulhados nesse processo que tudo se tornou uma coisa quase que naturalizada para o grupo”, diz Rodolfo. “É como se a tecnologia tivesse sido definitivamente incorporada em nossa forma de expressão artística. Por isso são atores ciborgues”, diz Rodolfo.

 

Teatro ciborgue

Por ciborgue, explica o diretor, entende-se aqui o fato de a pandemia ter colocado todos nós – ou muitos de nós – em relações totalmente mediadas pela tecnologia, por meio de plataformas como Zoom, Google Meets, WhatsApp, lives etc, sem o contato físico. Os instrumentos tecnológicos começaram a funcionar como extensões corpóreas da existência numa escala até então nunca experimentada.

“A nossa vida atualmente é uma vida ciborgue”, diz Rodolfo.  E o que é uma vida ciborgue? “É aquela que mistura o organismo, o orgânico, o org, com o cibernético, com a máquina. Se for analisar, grande parte do seu dia de trabalho hoje acontece por extensões ciborgues que nos facilitam o trabalho”, continua. “A pandemia também colocou a vida social numa condição ciborgue, ou seja, essa arte que estamos produzindo não aconteceria sem energia elétrica, internet, sem Zoom. Ela só consegue existir porque nosso corpo se manifesta por meio desses canais tecnológicos e se concretiza numa forma digital.”

 

Versões internacionais

Conhecidos por sua produção prolífica, Os Satyros já estão preparando outros espetáculos digitais, para compor a chamada Trilogia da Quarentena. E também já estão trabalhando em versões internacionais de A Arte De Encarar o Medo – afinal, na geografia digital, o mundo é o limite.

Segundo Ivam Cabral, em dois meses deve estrear uma encenação totalmente em inglês e com atores de vários países. “Já temos atores da Suécia, Finlândia, Suíça, Portugal, Espanha e Inglaterra”, afirma Ivam ao A Vida no Centro. “Paralelamente, já começamos a conversar com Nova York, a partir de amigos e pessoas que a gente conhece lá, para montarmos esse espetáculo com atores americanos. Vamos estrear nos horários da Europa e dos EUA. Vai ser duro pro Rodolfo, porque aí ele não vai dormir nunca mais. Mas como ele é workaholic, tá tudo certo”, brinca Ivam.

 

Viagem inspiradora

A Arte de Encarar o Medo é um gatilho ciborgue que acelera o processo de virtualização do teatro, sem com isso renegar o teatro tal como o conhecemos. Não se trata de substituição quando finalmente houver uma vacina para a Covid-19 e os espaços puderem funcionar sem riscos à saúde das pessoas, mas de abrir possibilidades.

É um estímulo criativo disparado por causa da pandemia e que aponta um caminho até então nunca tinha trilhado com afinco e destreza por ninguém. Isso não é pouco. Portanto, fica aqui a sugestão: experimente, embarque nessa Millennium Falcon chamada A Arte de Encarar o Medo e deixe-se tocar por essa experiência estética emocionante, potente e inspiradora.

 

Fonte: HuffPost Brasil

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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