CRÍTICA: OS SATYROS APRESENTAM ADAPTAÇÃO DE SATYRICON, DE PETRÔNIO

Satyricon: humor e drama na dose certa, e interpretação visceral das dezenas de atores e atrizes que compõem o elenco

por Tiel Lieder

Em espetáculo visceral, que alterna humor e drama, Os Satyros apresentam adaptação de obra de Petrônio.

A Cia. de Teatro Os Satyros estreou uma ousada e criativa adaptação de Satyricon, concebida a partir da obra do escritor romano Petrônio (27-66 d.C.). Dirigido por Rodolfo García Vázquez e com dramaturgia do cineasta Evaldo Mocarzel, o projeto é composto por três partes (Trincha, Satyricon e Suburra) que dialogam entre si.

A peça é uma experiência catártica: todo o submundo da prostituição masculina retratado por Petrônio apresenta uma dose de atualidade impressionante, em se tratando de um texto escrito há quase dois milênios.

Obviamente, elementos da atualidade são inseridos na adaptação das três peças, que trazem questões como a exploração sexual de escravos (e a atual exploração do sexo em todas as suas vertentes), a “força da grana que ergue e destroi coisas belas” comprando corpos e perdendo almas, a traição e o desapego, o desejo de vingança infelizmente ainda inerente ao ser humano, o sistema de exploração da força de trabalho do proletariado pelos patrões, a fragilidade das elites que acreditam ser possível comprar tudo com o vil metal.

Tudo com humor e drama na dose certa, e interpretação visceral das dezenas de atores e atrizes que compõem o elenco.

Um aspecto a se destacar, aos interessados em assistir, é a nudez coletiva que permeia os espetáculos, e as intensas cenas de sexo apresentadas. Nesse sentido, após um breve impacto inicial ao deparar tantos corpos despidos e personagens a gozar e gritar, o espectador logo deve tornar-se habituado com a situação, o que mostra como a nudez pode ser relativizada e desvinculada do desejo carnal.

Para Os Satyros (grupo fundado em 1989 por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez e que sempre procurou trabalhar a ideia de um teatro essencialmente crítico), a obra permite uma sobreposição da sociedade romana – em relação ao cenário de prostituição masculina e ao universo da malandragem – com a realidade encontrada no trabalho de pesquisa do grupo nas redondezas da Praça Roosevelt.

Vale lembrar a adaptação de Satyricon realizada em 1969 e dirigida pelo genial cineasta italiano Federico Fellini, que em alguns aspectos traz semelhanças com a montagem dos Satyros.

Cada parte do projeto é apresentada em dias e horários distintos e podem ser vistas independentemente.

Trincha, uma Instalação Performática

Trincha, a primeira parte do projeto, é uma instalação performática, que reproduz o submundo das grandes cidades. Nesse espetáculo, o público é convidado a trafegar por uma realidade bastante característica das grandes cidades de ontem e de hoje.

Em uma espécie de Rua Aurora estilizada, exagerada e exasperada, elementos das artes plásticas, cinema, música e teatro se fundem, em uma retratação das pessoas que fazem a noite: prostitutas, cafetões, policiais, transeuntes, personagens que usam e são usados, numa roda viva de prazeres e desatinos.

Satyricon, o espetáculo

A segunda parte, Satyricon, consiste na peça teatral inspirada nos fragmentos da obra homônima de Petrônio, escrita, provavelmente, no ano 60 d.C. e nos relatos de garotos de programa e de certa realidade oculta do centro de São Paulo.

Os escritos de Petrônio foram adaptados pelo dramaturgo e cineasta Evaldo Mocarzel e relatam a história de um triângulo amoroso de ex-gladiadores – Encólpio, Gitão e Ascilto – que praticam roubos e se prostituem para viver.

O triângulo frequenta desde os ambientes mais populares até as grandes festas da elite romana. Para Mocarzel, “a atualidade do texto é algo que realmente impressiona na descrição desse submundo prostituição”.

Segundo Vázquez, diretor do espetáculo, “muitas coisas permanecem exatamente iguais, embora tenham se passado muitos anos desde que a obra foi escrita. Em pleno século XXI, o nosso mundo é globalizado e tecnológico, e, mesmo assim, tão antigo quanto as ruínas do Coliseu”. Vázquez destaca ainda o grande poder que o passado tem de influenciar a vida no presente.

A peça é estimulante, quase alucinante; por vezes melancólica, noutras erótica; em certos momentos, complexa, noutros, hilária; em instantes, sexual, noutras, emocional, quase espiritual. Como na fala da atriz que abre o espetáculo, que é mais ou menos assim: “há tantos deuses atualmente que está difícil de achar um homem nesse mundo.”

Já a arrogância da elite, que não é privilégio somente dos antigos romanos, é ilustrada quando uma bela e rica dama se irrita com o escravo que não consegue cumprir suas obrigações sexuais em seu leito: “Eu não preciso de você! Sabe por que não preciso de você? Porque sou rica!”

A fusão das vertentes artísticas (teatro, dança, cinema, música, artes plásticas) traz dinamismo à peça, que conta com cenas clássicas, como a da orgia e a do naufrágio, em que corpos se imiscuem numa espécie de geleia geral insana e profana.

Suburra, uma rave teatral

Na terceira e última parte, Suburra, participei de uma rave teatral, em uma experiência surreal. O público fica de pé no centro do palco (menos aquelas pessoas que não têm condições de permanecer muito tempo em pé), onde acontece uma grande festa, com os atores e atrizes a interagir, dançar, brincar, provocar o público, enquanto outra parte do elenco encena coreografias e canta músicas nos dois extremos do palco.

A fala de Vasquez, diretor do espetáculo – “fica determinantemente proibido o assunto trabalho porque este espaço é para a descontração” –, ressoa ainda mais profundamente quando todos cantam “você é a cópia de seu patrão, você é a fortuna do seu patrão”, e expõe as contradições e dilemas diários com que se debatem os cidadãos assalariados – e muitas vezes explorados – dessa Roma Antiga que se repete como farsa em São Paulo e no mundo.

O final de Suburra, quando alguns do elenco passeiam entre o público com enormes águas-vivas artesanais, acalma os instintos aflorados e leva todos ao campo dos sonhos evocado pela mansidão e imensidão do mar.

Para quem gosta de peças de teatro experimentais, ousadas e críticas, fica a dica.

Fonte: Fala Cultura, 3 de maio de 2012

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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