CRÍTICA O GLOBO | ‘A arte de encarar o medo’ propõe novas experiências de linguagem

Espetáculo do grupo Os Satyros faz rico uso das possibilidades do Zoom, em dispositivo com 17 atuantes de diversas cidades do Brasil e do mundo

por Patrick Pessoa

RIO — Existe uma expressão oriunda dos livros de autoajudaque, com certo uso do gerúndio (“vou estar fazendo”, “vou estar entrando em contato” etc.), contaminou o tecido social (e a linguagem que dele se alimenta) de forma aparentemente irremediável. Trata-se da expressão “sair da zona de conforto”. Por mais que a ideologia americanoide do “comfort” seja dependente de um aumento do poder de consumo que coloca em xeque a vida sobre a Terra, sua crítica responsável não passa por um elogio da precariedade, do tipo “já que todos vamos morrer mesmo, não há nada a fazer”.

Sair da zona de conforto é algo que só se faz em situação de perigo extremo, existencial ou social, e não algo que se possa escolher por esporte ou narcisismo. Ao ser obrigado a migrar para as plataformas virtuais, o teatro foi forçado a sair de sua “zona de conforto”. Mesmo que saibamos que o lugar do teatro nunca foi propriamente confortável e que o processo de precarização do trabalho dos artistas já vem se intensificando há anos, a realidade imposta pela Covid-19 colocou em xeque a própria existência do teatro como “arte da presença”. E, no entanto, não por heroísmo, mas por necessidade de respirar, muitos artistas vêm tentando propor novas experiências de linguagem.

“A arte de encarar o medo”, dos Satyros, tradicional grupo paulistano no coração da praça Roosevelt, com dramaturgia de Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, que também assina a direção, tem o mérito de encarar o medo de fazer esse teatro apostando em um dispositivo com 17 atuantes, em diversas cidades do Brasil e do mundo. Os Satyros transformaram a Covid em uma chance de escapar ao formato de produções cada vez mais obrigadas a limitar suas pretensões estéticas por razões econômicas, como atesta a proliferação de monólogos. Além da “suntuosidade” no número de atuantes, também é bastante rico o uso das possibilidades do Zoom, no que respeita a enquadramentos e justaposição de telas, e mesmo a travellings feitos pelos próprios atuantes valendo-se de singelos telefones celulares.

Se a polifonia do dispositivo e os riscos técnicos assumidos pela produção e por atuações não raro performáticas são exemplos de uma necessária arte de encarar o medo, o mesmo não se pode dizer da dramaturgia, que se constrói como crônica das múltiplas faces do terror em meio ao qual vivemos. Se o próprio ato de seguir fazendo teatro, apesar de todas as limitações, é um potente antídoto contra o medo, saí da experiência me perguntando até que ponto falar do medo é a melhor estratégia para “adiar o fim do mundo”. Talvez simplesmente falar de outras coisas, que mostram que a vida sempre resiste nas frestas do Poder, seja estratégia mais eficaz para, à força de repetições ciosamente ensaiadas, converter o lobo em bolo — como no inesquecível “Chapeuzinho amarelo”, de Chico Buarque, obra mais atual do que nunca.

“A arte de encarar o medo”. Sex e sáb, às 21h. Dom, às 16h. Ingressos: contribuição solidária a partir de R$ 20, no Sympla. 50 minutos. Não recomendado para menores de 16 anos.

Fonte: O Globo

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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