CRÍTICA | As Mariposas é alerta do Satyros para humanidade em voo da morte

Crítica por Miguel Arcanjo Prado

As MariposasÓtimo ✪✪✪✪✪

As mariposas gostam de voar em fugazes movimentos espirais ao redor da luz quente, num soturno bailado de prazer e morte até serem chamuscadas.

Refletindo a cosmogonia universal, certamente regida pelas leis da física quântica, as mariposas se assemelham aos planetas, que orbitam em torno de uma estrela, também em uma dança em espiral em tempo dilatado até serem engolidos pelas labaredas de luz.

Este mesmo movimento se repete também com a humanidade nos dias atuais, atraída (e cegada) cada vez mais pelas luzes tecnológicas, com suas redes imersas no viciante ódio e que acabam por nos distanciar da natureza e de nossa própria humanidade. O caminho, parece ser só um: o apocalipse feito de um melancólico fim.

Esta perspicaz reflexão está presente no espetáculo de teatro digital As Mariposas, escrito com esmero pelos inventivos Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez e encenado pelo último com 13 atores da Cia. de Teatro Os Satyros, fundada por eles em 1989.

Integrados, atores e atrizes merecem ser nomeados com atenção: Diego Ribeiro, Eduardo Chagas, Fabio Penna, Gustavo Ferreira, Henrique Mello, Ivam Cabral, Ju Alonso, Julia Bobrow, Nicole Puzzi, Marcia Daylin, Mariana França, Sabrina Denobile e Silvio Eduardo.

A obra futurista e distópica se passa daqui a um século, no ano de 2121, criando interessantes paralelos com o estupefato Brasil de hoje. Instigante, a montagem pode ser apreciada de quinta a sábado, às 21h, e domingo, 18h, no Espaço Digital dos Satyros com ingressos gratuitos ou R$ 10 de válida contribuição espontânea com os artistas.

Em As Mariposas, a humanidade já não convive mais com animais ou plantas. Água é artigo de luxo. As grandes cidades viraram desertos de almas errantes. A reprodução é feita in vitro. E o país está nas mãos de um ditador que se mantém no poder em revezamento com seus 87 filhos. Ironicamente, todo esse caos começa no fatídico ano de 2018.

Neste último ano pandêmico, o Satyros se tornou o maior expert em teatro digital não só no Brasil como no mundo, sendo procurado por instituições internacionais respeitadas como o Ministério da Cultura da Suécia, a Universidade de Birmingham na Inglaterra, a Escola de Teatro e Cinema de Estocolmo ou a Escola de Teatro de Helsinque, na Finlândia.

Todas sedentas por aprender as descobertas da companhia brasileira sobre a nova linguagem artística que fusiona teatro e audiovisual de uma forma surpreendente, o teatro digital.

Basta lembrar que o Satyros realizou a mais importante obra do teatro brasileiro em 2020, A Arte de Encarar o Medo, também escrita por Ivam e Rodolfo. 

Elogiada pela imprensa global, com direito a reportagem na revista Time Out, verdadeira bíblia da cultura em Nova York, a obra ganhou três montagens internacionais com atores brasileiros, europeus, africanos e estadunidenses, versões apresentadas em quatro continentes. Indicada ao Prêmio Arcanjo e Prêmio APCA aqui no Brasil, ainda foi premiada nos Estados Unidos e na Índia.

Após esta primeira grande peça digital, seguida de Novos Normais, As Mariposas surge como a mais requintada das três peças da trilogia feita em pandemia. É uma espécie de peça-filme produzida, atuada e montada ao vivo, em uma verdadeira operação conjunta e horizontal na qual a cada ator corresponde não só a atuação como também manipular toda a parafernália técnica.

Dessa forma, os artistas do Satyros não são apenas atores, mas também produtores, montadores, maquiadores, cabeleireiros, editores, diretores de fotografia, iluminadores, montadores, cenógrafos, contrarregras e figurinistas ao mesmo tempo. Isso faz do elenco do Satyros o mais diverso e completo tecnicamente entre as companhias teatrais estáveis do Brasil contemporâneo.

Para fazer tudo isso soar afinado em cena, o grupo tem um técnico de mão cheia, Flavio Duarte, que funciona como uma espécie de co-maestro digital ao lado do sempre atento maestro Rodolfo García Vázquez. Com seu peso crucial em cena, mesmo sem ser visto, Flavio Duarte é uma espécie de 14º ator de As Mariposas.

Neste contexto de atores e equipe técnica afinados e entregues à arte teatral em um dos momentos históricos mais duros para a milenar linguagem, é preciso esmiuçar o trabalho que o elenco constrói.

Comecemos com um ator que sintetiza essa versatilidade presente no grupo. Já que, além de atuar, ele também é artista gráfico de mão cheia e um grande comunicador digital. É tocante o que Diego Ribeiro consegue como ator com seu personagem Penitente, um jovem autista à deriva e em busca de um amor, mesmo que idílico. Trata-se de atuação arrebatadora deste artista, merecedor de aplauso e prêmio.

Por sua vez, Henrique Mello, como Romeo ou Islândia, sua drag queen que brinca com os limites de gênero, impõe atuação sofisticada, fazendo de sua personagem um fascínio para a fria humanidade futura. Ele imprime ares nostálgicos às suas perfomances de dublagem, o que torna Islândia um respiro dentro do peso dramático dos acontecimentos que permeiam o espetáculo e que anunciam tragédia para a própria personagem.

Um dos fortes embates é o realizado por Amador, o digital influencer do mal e narrador vivido com entrega por Ivam Cabral, e Penitência, a mulher madura e perdida interpretada com candura por Nicole Puzzi. Ivam assume em cena a maldade típica de homens que maltratam mulheres, sobretudo quando estas amadurecem, enquanto a Nicole cabe toda a fragilidade desta situação.

Diante de seu algoz, Nicole empresta sua trajetória de musa indiscutível do cinema brasileiro à personagem, trazendo frescor a cada texto que sai de sua boca, mesmo com sua personagem em penúria. Diante do maquiavelismo representado pelo personagem de Ivam, Nicole transcende em seu belo corpo todas as mulheres que são abandonadas ou trocadas por outras mais jovens. Isso é profundamente tocante.

Ainda há outra difícil dor de ser digerida em As Mariposas: a da perda dos filhos. O casal Romulo e Moreia, interpretados por Eduardo Chagas e Mariana França, enfrentam a ferida irreparável de um acidente que mata seus dois filhos, Isla e Arlo, personagens de Sabrina Denobile e Silvio Eduardo, ‘ressuscitados’ em forma de avatares produzidos por inteligência artificial.

Separados pela tragédia, os pais mergulham em dor, enquanto as crianças são recriadas por algoritmos, em uma das caracterizações mais potentes proposta pela brilhante direção de arte do espetáculo. Esta é assinada por Adriana Vaz e Thiago Capella com assistência de Letícia Gomide, e também tem seu ponto forte na exuberancia visual criada no Espaço do Satyros da praça Roosevelt, onde atuam Marcia Dailyn, Henrique Mello e Silvio Eduardo, enquanto que o restante do elenco encena de suas respectivas casas.

Eduardo Chagas incorpora o desalento misturado à culpa, enquanto que Mariana França imprime a revolta em sua dor de mãe. Ao buscar elementos da ancestralidade afro para curar sua alma, a atriz imprime novos significados à dor dessa mãe, sobretudo em um país que vê inerte mães negras chorarem por seus filhos.

Como dois erês computadorizados, os talentosos Sabrina Denobile e Silvio Eduardo criam um jogo interessante entre Isla e Arlo, trazendo uma candura e certa peraltice aos personagens, que são em si uma suspensão visual no espetáculo.

Falando em filhos, outro par também discute questões referentes à reprodução na peça. Amiel e Bela, interpretados pelos intensos Gustavo Ferreira e Julia Bobrow. Estes são dois aguerridos membros da Zona Autônoma de Libertação, desejosos em derrubar o sistema opressor. 

Contudo, o casal militante entra embate familiar quanto à forma de reprodução. Enquanto o pai prefere o uso da inseminação artificial, a futura mãe insiste na forma natural, mesmo que isso signifique que seu filho não seja saudável, dado às circunstâncias caóticas do planeta. Ao insistir nessa decisão, Bela mergulha em um sectarismo profundo. A discussão ética de discurso versus prática colocada pelos personagens é de fazer qualquer um refletir.

E o ódio habita as profundezas das redes, costurado por um gabinete de ódio alimentado por sete seres inescrupulosos e que estão condensados no olhar fuzilante e perturbador que o ator Fabio Penna imprime ao seu personagem Alisso, um stalker que sente ódio das conquistas alheias e que exala violência e morte por detrás de seu covarde anonimato digital.

Já Peonia, papel denso defendido com bravura por Ju Alonso, vive reclusa com suas dezenas de gatos, últimos remanescentes da fauna — seu texto presta tributo a Primo Bianco, o famoso gato da diva Phedra D. Córdoba (1938-2016), a célebre integrante cubana do Satyros, bichano que já esteve no texto da peça Entrevista com Phedra, escrito pelo autor desta crítica. 

Peonia é voluntária em um centro que atende chamadas de possíveis suicidas, carregando diariamente a angústia de fazer alguém do outro lado da linha desistir desta opção trágica, em uma espécie de heroísmo cotidiano anônimo.

Se em boa parte do espetáculo o ar é mesmo irrespirável, há a brisa do amor e da poesia que exala Marcia Dailyn como Alma de Vera, parceira no cabaret futurista de Henrique Mello, como Islândia. Ambas vivem imersas no mundo do espetáculo, que só por elas sobrevive. 

A Alma de Marcia Dailyn traz uma aura de diva do começo do século 20, sempre prestando tributo às antecessoras, em uma lição de respeito e, sobretudo, humanidade. A personagem não deixa de ser uma homenagem dos dramaturgos à própria Marcia, que herdou de Phedra o título de Diva da Praça Roosevelt, concedido por Ivam e Rodolfo, e que sempre demonstra nobre cuidado com as travestis e transformistas pioneiras do teatro brasileiro, “minhas velhas”, como diz.

Ao contrário de uma arrogante new generation que pensa inventar a roda, Marcia sabe que o caminho que pisa foi criado, tijolo por tijolo, pelas antecessoras e por ela mesma, a primeira bailarina trans do Theatro Municipal de São Paulo. Grande artista que é, Marcia Dailyn se fusiona com Alma de Vera no respeito à trajetória.

Em seu delírio cego diante da beleza, glamour e poesia que elas mesmas representam, Alma e Islândia não percebem a aproximação do ódio violento, que se acerca cada vez mais, no intuito de destruir a chama de vida que exala frente às cortinas de veludo vermelha e sob um globo espelhado digno da pista das lendárias boates Studio 54, em Nova York, e Dancin’Days no Rio.

Espécie de miscelânea ambientada no passado-presente-futuro, As Mariposas é um alerta do Satyros de que este voo da humanidade rumo à luz tecnológica em altíssima velocidade poderá se converter em um triste fim. Fim este que, aliás, já começou e cujos números nos aterrorizam diariamente. 

Expor esse pavor de forma poética, sensível e impecavelmente técnica é o grande mérito deste espetáculo. Em As Mariposas, o Satyros utiliza-se de uma linguagem artística criada pelo próprio grupo como forma de sobrevivência, o teatro digital. Assim, segue como locomotiva de vanguarda teatral-tecnológica. Tal qual um Cavalo de Troia, se fantasia de algoritmos para enganar o inimigo, furar bolhas e irromper com uma dura verdade que faça despertar nossa humanidade e abrir nossos olhos da cegueira inebriante das telas que só nos leva ao ardor da morte.

As Mariposas – Ótimo ✪✪✪✪✪

Fonte: Blog do Arcanjo

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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