CRÍTICA | As Bruxas de Salém’ desvia de melodrama e mira na extrema direita

Grupo Satyros se aproveita da analogia histórica inerente a obra para reforçar critica social presente no texto de Arthur Miller

por: Paulo Bio Toledo

AS BRUXAS DE SALÉM
Quando Qui. a sáb., às 20h30; dom., às 18h. Até 27/8
Onde Espaço dos Satyros – pça. Franklin Roosevelt, 214, São Paulo

Preço R$ 50, em sympla.com.br

Classificação 16 anos

Elenco Henrique Mello e Julia Bobrow

Direção Rodolfo García Vázquez

 

A peça “As Bruxas de Salém”, um clássico de Arthur Miller, se passa no condado de Essex, estado de Massachusetts, quando os EUA eram ainda uma colônia da Inglaterra. Ali, em 1692, teve lugar uma histórica e delirante caça às bruxas.

Em poucos meses, centenas de habitantes do lugar foram condenados. Catorze pessoas foram enforcadas. Nem crianças escaparam dos veredictos proferidos pelo tribunal que se formou na fria e conservadora Salém.

Mas, como se sabe, para além do assunto histórico, a peça de 1953 faz referência indireta aos trabalhos persecutórios do senador Joseph McCarthy na década de 1950. Em parceria com o diretor do FBI, J. Edgar Hoover, o político estimulou uma série de investigações e perseguições judiciais arbitrárias contra indivíduos de esquerda nos EUA.

O campo cultural foi um dos principais alvos dessa caça às bruxas contemporânea. Charles Chaplin, por exemplo, no auge de sua carreira, foi obrigado a deixar os EUA, acusado de ser simpatizante do comunismo.

O próprio Arthur Miller seria convocado pelo Comitê Parlamentar das Atividades Antiamericanas em 1956, após a delação de seu amigo, o diretor Elia Kazan.

De modo sutil e também corajoso, o autor de “As bruxas de Salém” faz com que o assunto histórico do século XVII salte sobre o presente.

Com o mesmo empenho, a montagem atual dos Satyros atualiza e posiciona localmente o mecanismo de analogia histórica que existe na obra. A furiosa caça às bruxas do século XVII se transforma numa imagem dos surtos violentos protagonizados por grupos brasileiros de extrema-direita nos últimos quatro ou cinco anos.

A montagem assinala que, tal qual os puritanos do século XVII, os defensores da família e de Deus hoje também creem estar numa batalha divina contra forças demoníacas e, para isso, mobilizam um turbilhão de teorias conspiratórias, torções alucinantes da verdade e um fanático conservadorismo medieval.

A adaptação, contudo, tem de lidar com um impasse do texto original. Há na peça de Arthur Miller um andamento excessivamente melodramático.

Fiz tudo isso por você, John Proctor”, diz a protagonista Abigail Williams, uma jovem de Salém, que após um caso com o colono fica obcecada por ele. Quando é pega dançando na floresta, mobiliza o pavor delirante da época para dizer que estava sob domínio de bruxaria.

Em seguida, ela se aproveita da histeria persecutória deflagrada na cidade para tentar afastar Proctor da esposa. Como se vê, Arthur Miller inventa uma vilã moralmente depravada, de caráter duvidoso, movida por “natureza vingativa” e faz dela o motor dos acontecimentos.

É uma invenção – a verdadeira Abigail Williams era somente uma criança em 1692 – que busca aumentar a intensidade dramática e sentimental da obra, mas que, na verdade, enfraquece os debates históricos ou o comentário contemporâneo em favor de uma narrativa de intriga sobre amor, ciúmes, traição e ressentimento.

Em contrapartida, a adaptação realizada pelos Satyros e dirigida por Rodolfo García Vázquez cria bons desvios estruturais do melodrama. Embora ainda persista algo da trama privada e sentimental, a ela são contrapostas cenas corais, imagens alegóricas sobre a sociedade brasileira e comentários narrativos voltados ao público.

O numeroso elenco, uma pequena multidão em cena, dá a ver o sentido social de diversas passagens da peça ao ressaltar a dimensão pública dos acontecimentos.

Mais que isso, o espetáculo também inventa uma nova perspectiva, a de um coro negro, que gravita em torno da trama e cria um contraponto tanto ao andamento dramático da ação, como também aos modos brancos e ocidentais de compreensão da espiritualidade e da vida.

O coro de atrizes e atores pretos observa os fatos, canta e sustenta uma presença coletiva. Faz lembrar, ao mesmo tempo, da estrutura escravocrata a rondar aquela sociedade e que o caminho de resistência talvez tenha de vir de fora dela.

Fonte: Folha de S.Paulo, 29 de junho de 2023

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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