Cores de Almodóvar

Ele é ator e dirige um grande teatro público. Está em seu escritório quando o telefone toca. É o Ministro da Cultura anunciando que está passando pelas redondezas e  vai lhe fazer uma visita rápida. Naquele momento, ele prepara uma recepção para seu amigo Presidente que irá acontecer logo mais, à noite, em seu apartamento.

Mas o telefonema do Ministro da Cultura o preocupa porque, perto das 18h, iria levar sua amiga transexual de 70 e tais anos para fazer um despacho numa mata. Ele, embora não tenha nenhuma relação com despachos e essas coisas, estava, há dias, sendo pressionado pela amiga que queria a sua participação naquele “trabalho”.

Enquanto fala com o Ministro, percebe, em seu celular, uma chamada em espera da amiga transexual. Consegue finalizar a conversa com o Ministro a tempo de recuperar a chamada de sua amiga.

– Então, tá vindo pra cá?

– Meu amor, aconteceu um imprevisto e eu não poderei te acompanhar.

– Mas como? As coisas aqui já estão fedendo, foram compradas há quase uma semana.

Ele se lembra que aquela ida à mata está sendo planejada há dias, interrompida, mais de uma vez, por conta de seus compromissos.

– O frango e as frutas estão apodrecendo e eu já não tenho mais mel para conter o mau cheiro.

Sim, ela havia contado a ele que vinha despejando mel naquele despacho há dias. Ele não tinha mais como enrolar a amiga e o “trabalho” deveria acontecer naquele início de noite. É sexta-feira.

– Ok, me dê um tempo, querida, vou ver o que consigo aqui e te ligo em cinco minutos.

Ele desliga o telefone e uma amiga da repartição lhe sugere um taxista de confiança.

– Espera. Mas como explicar ao homem que nossa amiga vai fazer um despacho no meio da mata? E se ele se recusar?

A amiga da repartição é quem tem a ideia:

– Eu digo a ele que ela é uma senhora de idade, muito religiosa, que precisa pagar uma promessa.

Ele está aliviado. A amiga da repartição telefona para o taxista que aceita a empreitada. Então, ele liga, mais uma vez, pra amiga transexual dizendo que conseguiu um taxista que a levará para uma mata.

– Peça pra ele interfonar quando chegar porque eu não posso descer com a minha oferenda. É muito grande e está cheirando mal. Não posso ficar esperando na portaria do meu prédio com essas coisas todas.

Enquanto ele fala com a amiga transexual percebe que existe, mais uma vez, uma chamada em espera. É o Presidente. Ele desliga o telefone na cara da amiga transexual e aciona a chamada do Presidente que lhe pede para incluir na lista de convidados o nome do Ministro da Justiça.

Apesar do clima ameno, ele começa a transpirar. Desliga a chamada do Presidente enquanto sua amiga da repartição lhe informa que o taxista está na rua do prédio da amiga transexual mas que não consegue estacionar porque, ali, não existem vagas disponíveis.

Novamente ele telefona para a amiga transexual pedindo que ela desça depressa. Neste momento, mais uma vez, percebe uma chamada em espera. É de sua casa. Despede-se da amiga transexual enquanto puxa a chamada. Ao mesmo tempo em que  sua mulher, com a voz mais triste do mundo, lhe informa da morte da avó, o Ministro da Cultura aparece em sua sala.

* esta não é uma história de ficção.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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