Em cartaz no Teatro Satyros, clássico de Arthur Miller expõe perigos do efeito manada e questiona Operação Lava Jato
Alessandra Monterastelli
SÃO PAULO
Em 1692, algumas criadas brancas do povoado de Salém, na Massachusetts colonial, pedem ajuda à escrava Tituba para conquistar os homens que desejam. Em êxtase, as garotas dançam nuas em torno de um caldeirão com sangue, no que parece ser um culto à sexualidade feminina —fortemente reprimida na época.
Abigail é quem mais recorre aos feitiços de Tituba. Seu objetivo é a morte de Elizabeth Proctor, papel de Elisa Barboza, para ficar com seu marido, o fazendeiro John Proctor, com quem teve um caso. As meninas, porém, não contavam que seriam pegas no ato por Parris, pastor da cidade. Sua filha, que participava do ritual, adoece e, a partir daí, os rumores da prática de bruxaria se espalham por Salém.
O tribunal que se instaura para punir os acusados de comungar com o diabo na peça de Arthur Miller de fato existiu. Cerca de 200 pessoas foram condenadas e 20 enforcadas em um dos maiores episódios de histeria coletiva dos Estados Unidos colonial.
Em cartaz no Teatro Satyros, “Bruxas de Salém” se mantém fiel ao texto do dramaturgo norte-americano, mas adiciona elementos cênicos que criam uma ponte com o contexto brasileiro, em especial a judicialização da política pela Operação Lava Jato —e a posterior escalada do bolsonarismo.
Parris é aconselhado a perseguir aqueles que compactuam com o demônio para ser respeitado na Vila. O rico colono que o convence a iniciar a caça às bruxas é um homem interessado em comprar a terra dos vizinhos enforcados – e o próprio pastor declara sua repulsa pelos camponeses pobres.
Tituba, encarnada por Mariana França, é distante da moral cristã dualista e considera o bem e o mal igualmente como parte da vida. A personagem quer retornar a sua terra natal, onde não há inferno. “Barbados está para Tituba como Moscou para as três irmãs de Tchekov”, afirma a atriz. Mas, colocada contra a parede pelo reverendo Hale, papel de Diego Ribeiro, confessa o pecado até então inexistente para evitar punições.
Como ela mesma declara, os espíritos malignos lhe sussurravam, antes das ameaças, que o diabo estava nas ações dos homens brancos. “Quem vive em uma vala, suja e com fome, já não está no inferno?”, questiona Sarah Good, intérprete de Suzana Horácio, que, acusada de pecado por não saber de cor os dez mandamentos, zomba dos religiosos.
No momento que percebe que Tituba se salva ao confessar o pecado, Abigail decide fazer o mesmo, mas a conclusão dos religiosos é outra. “Ela é sobrinha do pastor e branca, então se aproveita dos privilégios que tem”, conta Julia Bobrow, que encarna a personagem.
A criada se torna uma espécie de santa, profeta capaz de apontar quem carrega o mal consigo. O sentido de importância conferido pelos poderosos reverendos parece incentivá-la a prosseguir com o disparo de acusações, e cada vez mais pessoas são condenadas à forca por um tribunal que age mais pela emoção do que pela razão.
“Não podemos vacilar, este é um novo tempo!”, brada o reverendo Hale à John Proctor, paixão não correspondida de Abigail e quem encarna o espírito do revolucionário na trama. O fazendeiro questiona o religioso sobre a acusação contra Rebecca Nurse, vivida por Marcia Dailyn, camponesa anciã adorada pelo povo e a primeira a questionar se, na realidade, o diabo não está nas próprias mazelas da sociedade.
Ambos os personagens, assim como o resto dos camponeses e criadas, usam vestes claras em tons de bege, enquanto os religiosos e ricos aparecem com as típicas vestes escuras usadas pelos colonos americanos do século 17.
A representação do efeito manada não poupa analogias ao bolsonarismo. Em determinado momento, todos os 33 atores do espetáculo entram em cena louvando a Deus, mas logo em seguida parecem fazer sinal aos extraterrestres.
“Queríamos fazer um paralelo com os fatos que culminaram no 8 de janeiro no Brasil”, diz o diretor Rodolfo García Vázquez, em referência a depredação do Congresso, do Palácio do Planalto e do Supremo Tribunal Federal no início do ano.
A invasão é recriada em cena. Inicialmente em câmera lenta, expressões cheias de ira e movimentos violentos ganham propulsão até transformar o palco em balbúrdia, com gritos de “Deus, pátria, família!” e “fora comunistas” enquanto facas, pistolas e machados são usados para destruir telas e louças.
Não por acaso, a peça foi originalmente escrita por Arthur Miller em 1953, durante o macarthismo, quando o governo dos Estados Unidos passou a perseguir comunistas, acusados de subversão e traição à nação.
Como representa o filme “Culpado por Suspeita”, de Irwin Winkler e estrelado por Robert de Niro, a pressão dos promotores somada ao sistema de delação premiada levou a um frenesi de acusações de bases fracas.
O cenário é similar ao instaurado pela Operação Lava Jato no Brasil, como ficou comprovado após o vazamento de conversas entre o então juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol. A intenção de prender Luiz Inácio Lula da Silva para impedi-lo de concorrer às eleições de 2018 teria superado o apego às provas.
“O senhor nunca se questionou sobre a inocência de Abigail e Parris?”, pergunta Proctor ao reverendo Hale, irritado, argumentando que os acusados só confessam para evitar o enforcamento.
Apesar de a maioria dos moradores da Vila darem testemunhos positivos sobre os condenados, o juiz Danforth, interpretado por Alex de Felix, prefere se ater às acusações dos que considera “bons cristãos”.
Para ele, como a bruxaria é um crime invisível, só se pode acreditar nos acusadores. “Deus, ensina os cristãos a destruir sem piedade aqueles a quem tenham que enfrentar”, brada Parris, empunhando uma cruz diante da plateia.
O julgamento final coloca à prova a máxima do espetáculo. “Aquele que luta contra monstros precisa ter cuidado para não se tornar um deles.”
AS BRUXAS DE SALÉM
Quando Qui. a sáb., às 20h30; dom., às 18h. Até 27/8
Onde Espaço dos Satyros – pça. Franklin Roosevelt, 214, São Paulo
Preço R$ 50, em sympla.com.br
Classificação 16 anos
Elenco Henrique Mello e Julia Bobrow
Direção Rodolfo García Vázquez
Fonte: Folha de São Paulo