VIVA! | Eterna Fernandona

Mais um frila pra revista Monet e dessa vez o assunto é o aniversário de 95 anos de uma das maiores atrizes da história da humanidade, a muito nossa Fernanda Montenegro. dessa vez não quis fazer apenas uma biografia recheada e entrevistei duas figuras do teatro para falar de Fernandona: o diretor, ator e dramatugro Ivam Cabral (d’Os Satyros, e que fiz perfil em 2018) e a atriz, diretora e dramaturga Érica Montanheiro. segue o texto com fotos de Bob Wolfenson.

 

A DONA DA PALAVRA

Fernanda Montenegro comemora 95 anos de vida e 80 de uma carreira toda dedicada ao texto

“Meu sonho era nunca estrear. Era ficar ensaiando, ensaiando, e aí a coisa ia acontecendo”, confessou certa vez Fernanda Montenegro à sua filha Fernanda Torres. Do alto de seus 95 anos, a grande dama do teatro, do cinema e da TV brasileira, também está comemorando 80 anos de ensaios e estreias. Impossível saber o que mais surpreenderia à pequena Arlette Pinheiro Esteves da Silva, nascida em 16 de outubro de 1929 em Madureira, no Rio de Janeiro: uma vida tão longa, uma carreira tão rica e premiada ou ser reconhecida como Fernanda Montenegro.

O pseudônimo que virou nome foi criação dela própria quando, logo após começar a trabalhar aos 15 anos como locutora e depois atriz na Rádio Ministério da Educação e Saúde (atual Rádio MEC), viu que Arlette Pinheiro não iria muito longe. Pensou em algo grandioso, um nome que poderia ser de uma escritora (ironicamente, muitos e muitos anos depois ela se tornaria um membro imortal da Academia Brasileira de Letras). Da cabeça de Arlette nasceu Fernanda Montenegro, que do rádio passou a atuar regular e apaixonadamente no teatro, onde conheceu seu marido (o ator e diretor Fernando Torres), e na televisão desde seu início no país em 1950. O cinema só viria mais tarde.

“Minha mãe é um caso sério. E ela é viciada mesmo em teatro. ‘Os teatros estão cheios, minha filha. Cheios!’”, disse Fernanda Torres nos bastidores da apresentação única e gratuita que a mãe fez em agosto deste ano no anfiteatro do Auditório Ibirapuera, em São Paulo. Numa noite quente de domingo, Fernanda Montenegro apresentou A Cerimônia do Adeus – monólogo baseado em textos de Simone de Beauvoir (1908-1986) sobre os últimos anos de vida de seu marido, Jean Paul Sartre (1905-1980) -, para nada menos que 15 mil pessoas.

“Fernanda Montenegro não é apenas uma mestra do teatro, mas também uma guardiã das múltiplas vozes que compõem o Brasil. Ela, ao longo de décadas, manteve uma companhia de teatro que cruzou as fronteiras do Brasil, levando a arte dramática a lugares onde o teatro era, muitas vezes, um raro visitante. Sua dedicação inabalável a esse trabalho itinerante reflete uma compreensão profunda do teatro como um espaço de encontro, de trocas simbólicas e de construção comunitária. Em um país continental como o nosso, onde as desigualdades culturais se manifestam com tanta força, a prática de Fernanda em levar o teatro aos mais variados rincões é uma forma potente de resistência e de valorização da cultura popular”, afirmou Ivam Cabral, ator, dramaturgo e fundador da companhia teatral Os Satyros.

Cabral nunca trabalhou com Fernanda Montenegro, mas após ser impactado por duas peças que viu com ela nos 1980 (As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant e Fedra), teve a rara oportunidade de ser seu aluno em um curso no Teatro Guaíra, em Curitiba. “Foi assim que, por três dias, tive a chance de conhecê-la em uma sala de aula. Aqueles encontros foram inesquecíveis e marcaram profundamente minha trajetória no teatro”.

Petra Von Kant e Fedra estão entre as Fernandas teatrais preferidas de Ivam Cabral, mas ele recorda também de Dona Doida, uma adaptação da obra de Adélia Prado; Dias Felizes, de Samuel Beckett, dividindo palco com o marido Fernando Torres; e a cultuada The Flash and Crash Days, de Gerald Thomas, apenas ela e a filha Fernanda Torres. “No cinema não tem como não dizer que sua atuação em Central do Brasil, de Walter Salles, é absolutamente magistral; e sua Nossa Senhora em O Auto da Compadecida, de Guel Arraes, Adriana Falcão e João Falcão, baseado na obra de Ariano Suassuna, é inesquecível. Ela não é apenas uma atriz que domina sua técnica com maestria, mas uma intérprete que infunde em cada personagem uma complexidade emocional e uma verdade cênica que transcendem o texto e tocam o espectador de forma visceral”.

Já a atriz, dramaturga e diretora Erica Montanheiro pensa um pouco e um pouco mais até chegar à conclusão que “é muito difícil definir a Fernanda, mas ela é certamente uma das principais referências para as atrizes brasileiras. A Dercy Gonçalves, por exemplo, é quem define o tempo da comédia no Brasil. Já a Marília Pera caminha no fio da navalha entre a comédia e o drama. E a Fernanda é o trabalho com a palavra, o poder da palavra, o domínio da palavra”.

Montanheiro também não teve a sorte de trabalhar com Fernanda Montenegro, mas guarda com carinho um encontro fortuito. “Foi no lançamento de um dos livros do Jô Soares, com quem trabalhei durante 11 anos. Estava lá na fila esperando pelo autógrafo quando percebi que quem estava na minha frente era a Fernanda. Quando a chegou a vez de ela pegar o autógrafo do Jô, os dois ficaram conversando e fui ali plateia desse encontro de dois monstros da cultura brasileira”.

E o que mais ela viu de Fernanda Montenegro que a marcou? Montanheiro lembra da “impressionante e inesquecível” montagem de Dias Felizes e da adaptação que Daniela Thomas fez de A Gaivota, de Anton Tchekhov, que trazia, em certo momento, “Dona Fernanda” como uma gaivota literal, fazendo barulhos e correndo pelo palco. “Muito engraçada, maravilhosa. Era algo que ninguém esperava da Dama do Teatro né, mas ela estava ali brincando como uma criança”. Montanheiro lembra ainda de se divertir horrores com personagem libertária que Fernanda Montenegro interpretou na novela Zazá, mas lembra sobretudo de Dora, a protagonista de Central do Brasil. “É um filme muito bonito e a Fernanda cria essa personagem cheia de contradições e com muitas camadas. E ela, ainda por cima, faz um melodrama com muito requinte”.

Fernanda por Bob Wolfenson, 2000

AZAR DO OSCAR

Fernanda Montenegro já era conhecida no teatro e na televisão, e tinha cerca de 35 anos, quando fez sua primeira protagonista para o cinema em A Falecida, adaptação de Nelson Rodrigues sob direção de Leon Hirszman. Suas prioridades sempre foram outras, e outros filmes notáveis só surgiram na virada da década de 1970 para a de 1980: Tudo Bem de Arnaldo Jabor e Eles Não Usam Black-Tie, novamente com Hirszman.

Uma participação aqui, outra acolá, o tempo foi passando e outra protagonista apareceu somente no final da década de 1990. Sua Dora de Central do Brasil rapidamente alavancou o filme de Walter Salles a outro patamar de densidade dramática, trazendo consigo elogios derramados da crítica, uma fiel legião de fãs e muitas indicações e premiações por todo o mundo (filme e atriz ganharam os principais prêmios do Festival de Berlim, por exemplo).

Então, quando vieram as indicações ao Oscar, uma nova esperança acendeu no coração do cinéfilo nacional. Se por um lado a estatueta para Melhor Filme Estrangeiro já estava na mão de Roberto Benigni e seu A Vida é Bela, a de Melhor Atriz, tão inesperada, poderia premiar o azarão e reconhecer Fernanda Montenegro mundialmente.

O momento da indicação ao Oscar foi registrado por uma equipe da TV Globo e quando o nome de Fernanda é anunciado, Walter Salles a abraça e ela diz apenas, meio com orgulho e meio com espanto: “Estou ali entre essas divinas criaturas maravilhosas. Louras”. E dá uma risadinha aérea. Suas “competidoras” eram Meryl Streep, Cate Blanchett, Gwyneth Paltrow e Emily Watson.

Mas em 21 de março de 1999, quando Jack Nicholson subiu ao palco do Dorothy Chandler Pavilion, o envelope que trazia em mãos tinha o nome de Gwyneth Paltrow. Foi uma das joias da coroa que o produtor Harvey Weinstein pagou – em termos de festas e agrados para membros da Academia – pelo sucesso de Shakespeare Apaixonado (que ganhou 7 prêmios naquela noite). Fernanda tanto não ligou que, quando um jornalista do New York Daily News perguntou se ela tinha planos para Hollywood, ela desdenhou elegantemente: “No Brasil, eu tenho uma carreira. Na América, eu tenho sotaque”.

Fernanda Montenegro pode não ter dado muita bola para o Oscar perdido, afinal continuou trabalhando incessantemente, mas a torcida brasileira nunca esquece uma injustiça. E não está só, afinal pouco mais de vinte anos depois, a atriz Glenn Close voltou a abrir a ferida em entrevista para a ABC News: “Honestamente, nunca entendi como é possível comparar atuações. Eu me lembro do ano em que Gwyneth Paltrow ganhou da atriz incrível de Central do Brasil. Eu pensei: ‘O quê? Isso não faz sentido’”, confidenciou. Não faz sentido mesmo, Glenn. Nunca fez.

Fernanda por Bob Wolfenson, 1995

 

Fonte: Dafne Souza

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