Sempre gostei de música. Me lembro que lá na minha pequenina Ribeirão Claro – onde também nasceu o compositor Carlos Paraná –o coreto e o rádio eram a nossa única porta para o mundo. A televisão veio depois, quando eu já tinha oito ou nove anos.
No coreto, “Melodia Sentimental”, de Villa-Lobos e Dora Vasconcellos, interpretada por Bidu Sayão, era executada religiosamente todas as noites, após a missa das sete e meia, nos convidando para ver a lua / que dorme na noite escura / que surge tão bela e branca / derramando doçura…
Mas têm ainda duas imagens muito fortes em minha memória. A primeira de quando eu tinha seis anos. Naquele dia, não houve aula em minha escola. Fomos todos convocados para ir à entrada da cidade, no trevo, onde receberíamos umas pessoas que viriam de muito longe. As imagens me vêm em preto e branco, como nas fotografias que vejo hoje, clicadas naquele dia pelo fotógrafo japonês, o único do lugar.
Como lembro deste dia! Eu, com o meu guarda-pó muito branco e engomado, segurando uma bandeirinha nas mãos. Depois, quando um carro muito grande e descapotado se aproximou, dona Marlene, a professora de Educação Física, ordenou por meio de um apito que levantássemos, acenando, as tais auriflamas. Senti um arrepio, o meu primeiro arrepio. E eu não entendia por quê.
Subimos, em cortejo, pela única rua asfaltada da minha pequenina cidade, rumo ao coreto. Aquelas pessoas lindas daquele carro eram Cascatinha e Inhana, a dupla famosa do rádio. Na praça, depois que um homem muito gordo falou por horas intermináveis – anos depois, viria a saber que este senhor era o prefeito da cidade –, a bandinha da minha Ribeirão Claro introduziu uns acordes. E ouvi, acho que pela primeira vez, “Chão de Estrelas”, de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa.
E foi aí que comecei a sentir os arrepios que sinto até hoje. Enquanto dona Marlene me dava pequenos beliscos para que continuasse levantando minha bandeirinha, eu, ali, me arrepiando e sentindo uma emoção tão grande enquanto, em solo, a Inhana dizia que a porta do barraco era sem trinco / mas a lua, furando o nosso zinco / salpicava de estrelas nosso chão…
A segunda imagem surgiu anos depois, quando a televisão chegou em minha casa. A primeira coisa que vi, lembro como se fosse hoje, o Chico Buarque cantando “Construção”, enquanto, no telhado da minha casa, meu pai – que trabalhava nesta época em São Paulo levantando algum desses edifícios por aí – arrumava a antena para que a gente conseguisse ter uma melhor definição da imagem.
E nunca mais esqueci os seus olhos naquela noite. Emocionados por tão nobre conquista, eles estavam embotados de cimento e lágrima… E eu, novamente, espremido num canto do velho sofá azul e branco da sala, me arrepiando.