Onde reina o medo, reina também a hipocrisia – As Bruxas de Salém
Por Douglas Ricci
@blogaus
Parece que nada mudou. Voltas e mais voltas do planeta ao redor do sol e a humanidade só faz repetir os mesmos erros, caindo em comportamentos guiados pelo medo e que desembocam no fascismo. Em As bruxas de Salém, peça que o norte-americano Arthur Miller escreveu em 1953 refletindo sobre a sociedade de então, pela lente de acontecimentos históricos ocorridos na cidade de Salém no final do século XVII, e que o grupo Os Satyros apresenta em uma brilhante montagem, esse mecanismo de manipulação da opinião pública a partir do jogo com o medo e o moralismo da população é desenhado de forma exemplar.
A liberdade, abrangendo um amplo espectro da sociedade, é algo muito recente na história da humanidade – e nos dias que correm ela se apresenta, em muitos casos, bastante limitada. Mas já houve tempos mais sombrios. Por séculos pairou sobre as sociedades ocidentais o peso da moral pautada por uma duvidosa interpretação dos textos bíblicos, gerando nas populações medos que ultrapassam os limites do mundo físico que conhecemos – prometendo condenações eternas àqueles que infringissem as tais leis morais divinas. Sendo essas leis traçadas a partir do entendimento das escrituras, elas ficaram abertas a serem manipuladas por aqueles que têm o poder de decidir o que é e o que não é divino, ou seja, o clero, composto geralmente por homens brancos defendendo seus interesses mundanos…
Na cidade de Salém, a partir da paixão individual de uma adolescente, um desejo de uma única pessoa, a fúria moral é despertada e contagia toda uma população dominada pelo medo da condenação à forca. Essa adolescente deseja um homem casado com quem manteve relações e vai em busca dos feitiços de uma mulher negra que domina a arte de prepará-los. Os negros entoam seus cantos, e fazem seus ritos na floresta e as brancas adolescentes vão até lá escondidas e pedem pra participar. São pegas em flagrante pelo reverendo da aldeia e uma delas, a filha do reverendo, tem uma crise histérica e gera a desconfiança de que está possuída por forças demoníacas. Começam então as acusações e a caça às bruxas. Aquilo que era uma paixão adolescente, uma brincadeira de meninas se torna um problema de ordem pública, e quem não se confessar culpado e arrependido estará irremediavelmente condenado.
Onde reina o medo, reina também a hipocrisia, e assim as forças fascistas podem se instalar espalhando e constitucionalizando injustiças de toda ordem. A coragem de ser íntegro ou de assumir seus erros não são virtudes corriqueiras nas sociedades, e assim, muitas vezes, o Estado acaba não assumindo os erros cometidos porque os indivíduos no poder não são capazes de fazê-lo.
Quanto vale a honestidade? Vale a vida? Vale a pena ser fiel aos seus princípios? É melhor contemplar calado a injustiça? E quando ela bater em sua porta para condená-lo também, como vai ser? A trama do espetáculo vai levando o público a esses questionamentos relacionados a nossa noção de justiça. Sabemos, enquanto público, que as narrativas estão sendo manipuladas em favor próprio de quem as manipula, e a encenação dá a deixa de forma explícita para traçarmos um paralelo com os enredos políticos do Brasil de hoje, em que grupos políticos manipulam setores da sociedade com uma suposta defesa da moralidade, da família e dos bons costumes critãos.
Não poderia ter momento mais assertivo para a montagem desta peça em nosso país, e o grupo Os Satyros o faz com maestria através da sensacional e brilhante encenação de Rodolfo García Vázquez junto de um vibrante e coeso elenco de 33 pessoas. Com uma iluminação que recorta a cena de forma precisa e marcações cênicas que pontuam as dinâmicas sociais que são apresentadas na trama, é belo de ver como as cenas vão se sucedendo em ritmo alucinante, embaladas por cortejos em círculo do volumoso elenco, e que me remete às encenações do polonês Tadeusz Kantor onde em diversos momentos esse movimento de cortejos em círculos são utilizados. Bem como é belo ver o trabalho dos atores, equalizado entre os veteranos do grupo e os mais jovens, com uma vibrante entrega à cena, o que resulta em uma plateia completamente arrebatada pela trama que se desenrola no palco.
Os Satyros mais uma vez entrega ao seu público uma necessária e bem feita obra teatral, em que os elementos da cena e seu conteúdo dialogam de forma coerente e precisa, gerando um dos pontos altos da encenação brasileira contemporânea.
Douglas Ricci é um artista da cena com diversificada formação e atividade. Ator, diretor, dramaturgo e crítico, foi aprendiz da Escola Livre de Teatro, da SP Escola de Teatro, do Núcleo Experimental de Artes Cênicas do SESI/SP entre outras escolas. Atualmente desenvolve pesquisa de mestrado no PPGAC da ECA/USP.
Ficha Técnica:
Idealização: Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez
Texto: Arthur Miller
Direção: Rodolfo García Vázquez
Elenco: Alana Carrer, Alessandra Nassi, Alex de Felix, Aline Barbosa, André Lu, Anna Paula Kuller, Bruno de Paula, Cristian Silva, Daj, Diego Ribeiro, Diogo Silva, Eduardo Chagas, Elisa Barboza, Felipe Estevão, Georgia Briano, Guilherme Andrade, Gustavo Ferreira, Henrique Mello, Heyde Sayama, Ícaro Gimenes, Jéssica de Aquino, Julia Bobrow, Karina Bastos, Laura Molinari, Luís Holiver, Marcia Dailyn, Mariana Costa, Mariana França, Morena Marconi, Pri Maggrih, Sabrina Denobile, Suzana Horácio e Vitor Lins
Assistência de Direção: Guilherme Andrade
Tradução: Rodolfo García Vázquez
Dramaturgismo: Luís Holiver e Sabrina Denobile
Figurino: Elisa Barboza e Marcia Dailyn
Cenário: Thiago Capella
Iluminação: Flávio Duarte
Sonoplastia: Coletiva
Preparação Vocal: André Lu
Operação de Luz: Flávio Duarte
Operação de Som: Gabriel Mello
Produção: Diego Ribeiro, Elisa Barboza, Gabriel Mello e Maiara Cicutt
Realização: Os Satyros
Fonte: Deus Ateu