FOLHA DE S.PAULO | Os Satyros apostam na IA e estreiam ‘Peça Para Salvar o Mundo’ sem atores no palco

Grupo da praça Roosevelt, em São Paulo, pesquisa o teatro ciborgue e assume ousadia digital com inspiração oswaldiana

Em 1928, o modernista Oswald de Andrade propôs, com o “Manifesto Antropófago”, devorar as influências das vanguardas europeias e as transformar em algo brasileiro, dando origem a uma insurreição contra a colonização da cultura nacional.

Quase cem anos depois, a companhia Os Satyros assume a inspiração oswaldiana e, diante do que chama de expansão vertiginosa das novas tecnologias, propõe o “Manifesto Tecnofágico” —um olhar crítico e de afirmação da potência humana, e brasileira— sobre as máquinas.

Apresentação do espetáculo ‘Peça para Salvar o Mundo’, da companhia Os Satyros – Fabricio Rodrigues/Divulgação

“Aqui, nesse chão híbrido tropical, emergem contrafeitiços, gambiarras, melodias, formas de resistência que nos fazem dançar com as máquinas”, diz o primeiro dos dez princípios do manifesto.

No palco, a iniciativa ganha tradução mais radical por meio da “Peça para Salvar o Mundo”, idealizada e escrita por Ivam Cabral e Rodolfo García Vázquez, fundadores do grupo, e encenada com um avatar no lugar dos atores. O espetáculo estreia nesta quarta-feira (23).

“Se a gente não tiver uma relação com a tecnologia, ela vai nos engolir. Então, temos que engolir ela antes”, diz Vázquez. “Temos que engolir a tecnologia e não a negar, porque ela a cada dia invade mais a nossa vida. E, se a gente não se relacionar com ela, vamos nos tornar obsoletos”.

Engolir e transformar, no caso deste espetáculo, significa usar a inteligência artificial para um diálogo em que a máquina colhe ideias, informações e estratégias junto ao público para salvar a humanidade de epidemias, crise climática, guerras e intolerâncias.

A interação ocorre em tempo real, por meio do avatar manipulado pela atriz Mariana Leme, fora de cena o tempo todo, e pelo designer Thiago Capella, da Circulus Ópera, produtora dedicada à arte com inteligência artificial. Ao longo da encenação, o avatar assume formatos de robô, mulher, homem, criança, velho e conversa com voluntários da plateia sobre questões relacionadas ao futuro.

O mote é a capacidade humana de promover o próprio extermínio, o que é ressaltado em imagens de guerra, fome e devastações projetadas num telão que ocupa o palco inteiro na sede dos Satyros, na praça Roosevelt, região central de São Paulo.

“Estamos aprendendo a fazer esse teatro novo e uma das questões é que preciso estar atenta a tudo. Por exemplo, preciso criar desenhos físicos do meu corpo como se fosse um robô”, explica a atriz.

As movimentações e as falas de Mariana são captadas por equipamentos, em uma sala distante do palco, e transformadas pela inteligência artificial no avatar que dialoga com o público.

Vázquez, um pesquisador do uso da tecnologia no teatro, ouve questionamentos da classe artística, que ficaram mais intensos a partir da decisão de estrear um espetáculo sem nenhum ator em cena. Mas reivindica o direito de experimentar e lembra o histórico de inovações nas artes cênicas.

“Desde as civilizações egípcias, grega e indiana, todas as tradições teatrais usaram tecnologias”, afirma, citando técnicas de som e iluminação como exemplos.

O dramaturgo e diretor da peça, no entanto, admite que hoje em dia as transformações são mais profundas e mexem com corpos e mentes. Ele destaca o conceito de ciborgue —um ser humano que não vive mais socialmente sem extensões tecnológicas, como os celulares.

“Não é mais um objeto externo. Somos nós fazendo parte da tecnologia. É um susto, mas não é um susto só do teatro, é um susto da sociedade que, ao mesmo tempo, tem um fascínio e um medo do que isso vai fazer conosco.”

O designer de inteligência artificial usa a combinação de dez softwares para captar os movimentos e os sons e os transformar nos diversos formatos do avatar que conduz o espetáculo. A pesquisa envolveu uma espécie de quebra-cabeças digital, com testes para entender o que funcionava melhor cenicamente e quais programas seriam cruzados para chegar ao resultado final.

“É importante dizer que tudo o que acontece é gerado pela atriz. Desde os movimentos, as intenções vocais, as expressões corporais e faciais”, diz Capella. “O que a inteligência artificial trabalha é a transcodificação desse conteúdo para a tela, para a projeção que o público vê”.

Os Satyros apostam na parceria com o mundo digital desde 2009, por meio de pesquisas sobre o potencial das tecnologias para a estética do teatro.

“Quando iniciamos nossa pesquisa sobre teatro ciborgue, há 16 anos, só tínhamos uma certeza: o teatro não poderia seguir alheio à revolução tecnológica que já estava em curso”, diz Ivam Cabral.

O grupo começou explorando o uso de celulares, internet e salas de bate-papo na peça “Hipóteses para o Amor e a Verdade”, sobre pessoas que vivem solitárias no centro de São Paulo. A pesquisa continuou nos espetáculos “Cabaret Stravaganza”, de 2010, e “E Se fez a Humanidade Ciborgue em Sete Dias”, em 2014, em que foram usados aplicativos de celular e a “tecnopresença” —a presença em algum espaço-tempo por meio do uso da tecnologia.

Na época da pandemia, a companhia mergulhou no teatro digital e apresentou 17 peças nesse formato entre 2020 e 2022 e, agora, avança para a encenação sem a presença de atores no palco.

“Fomos muito atacados quando fizemos o teatro digital no Zoom. Muita gente falou que não é teatro. Brigaram comigo. Eu falei ‘deixa eu fazer isso? Posso fazer?'”, recorda Vasquez.

Não que seja novidade quebrar barreiras. A ousadia faz parte do repertório do grupo desde a fundação, em 1989. A companhia tem em seu histórico, por exemplo, a integração da comunidade trans aos espaços da Roosevelt —além do teatro, Os Satyros são fundadores da SP Escola de Teatro, produzem o Festival Satyrianas e administram o Cine Bijou.

E robotizar o palco não significa que vão abandonar as artes cênicas tradicionais, com personagens de carne e osso. Prova disso, diz Vázquez, é que o grupo continua em cartaz com “A Casa de Bernarda Alba”, um clássico de Federico García Lorca com elenco formado por 25 atores.

A pesquisa com avatares em cena é parte de um curso que Vázquez ministra, no momento, na escola de teatro Ernst Busch, na Alemanha. “A gente não deve ter medo do futuro”, defende o diretor.

 

CONHEÇA O MANIFESTO TECNOFÁGICO

1. Nosso ponto de partida é o Brasil —mas um Brasil em transe tecnológico.

Aqui, nesse chão híbrido tropical, emergem contrafeitiços, gambiarras, melodias, formas de resistência que nos fazem dançar com as máquinas.

2. Somos criadores da máquina, mas como artistas nunca seremos suas criaturas.

A técnica nasce de mãos humanas, de corpos sensíveis. Somos atravessados pelas máquinas, mas nunca vamos nos submeter a elas.

3. Devorar não é copiar: é transmutar.

Antropofágicos, sim —comemos as energias e pulsões de seres humanos e máquinas, dos seres da natureza e das programações computacionais, e seguimos além— em direção a uma terra prometida e nunca alcançável.

4. Toda técnica é cosmológica.

Não existe tecnologia neutra, universal, fora das relações de poder. O algoritmo é uma forma de poder. A arte entra no combate contra os algoritmos.

5. Nada é mais humano do que um robô tupiniquim.

Toda inteligência artificial é fruto de um esforço coletivo da humanidade. Nossa tecnologia tupiniquim carrega o peso de toda a violência de nossa história. Reconhecer isso nos liberta para construir uma tecnoarte viva.

6. A estética do pensar é nossa arma secreta.

Os artistas podem subverter a lógica dos algoritmos dominantes. Pensar como artista não é calcular: é criar formas e transgressões que escapam ao tecnocapitalismo.

7. Recusar o destino não é recusar o futuro.

Enfrentamos o império do algoritmo e das programações não com isolamento, mas com desvio, glitch, dança e contraprogramação.
Queremos futuros múltiplos, mestiços, indeterminados.

8. Somos tecnoxamãs, tecnopoetas, tecnodesviantes.

Comunicamos com o digital como quem canta para espíritos —não para dominá-los, mas para coexistir com suas forças.

9. A cosmotecnologia é parte da cosmopolítica.

Somente através de uma arte cibernética podemos confrontar o tecnocapitalismo. Buscamos uma arte que pulsa com os circuitos, que tensiona o tempo, desprograma os protocolos, e inventa formas de existir em meio a tecnofeudalismo cada vez mais opressivo.

10. O teatro é nossa máquina de presença —e de desprogramação.

O teatro é laboratório de futuros: lugar onde a técnica encontra o corpo, e o corpo, em sua fragilidade, reencena o mundo.

 

Peça para Salvar o Mundo
Quando Qua. e qui., às 20h30. De 23 de abril a 29 de maio.
Onde Espaço dos Satyros – pç. Roosevelt, 214, São Paulo
Preço R$ 60,00 (inteira)
Classificação 14 anos
Elenco Mariana Leme
Direção Rodolfo García Vázquez.

 

Fonte: Folha de São Paulo

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