ANÁLISE | Monster: Um retrato terno da humanidade

Em Monster (2023), Hirokazu Kore-eda também revisita o humanismo de sua filmografia, mas seu desenvolvimento se intensifica e escala para novas alturas de sensibilidade na maneira como ele nos conta a história em três níveis diferentes, todos revelando as ambiguidades e nuances dos eventos que vivemos. Na superfície, a trama parece mais uma fábula contemporânea sobre dinâmicas familiares e vida escolar — temas comuns no trabalho do cineasta. Mas, por trás da superfície de uma trama aparentemente direta, há uma estrutura narrativa complexa cujas três interações adicionam dimensionalidade a um ato único, ampliando as possibilidades interpretativas para seus espectadores.

A beleza primordial do filme vem em grande parte da sua edição, que entrelaça as três perspectivas como três atos de uma peça polifônica. Um novo entendimento das personagens, suas motivações e suas dores surgem em cada capítulo subsequente. Kore-eda há muito tempo tem a habilidade de conduzir audiências através das variações da incerteza moral — pense em Pais e Filhos ou Assunto de Família —, mas em Monster existe uma sofisticação maior na maneira como as mudanças de perspectiva são tratadas. A edição é um potente dispositivo poético: eventos que, no primeiro capítulo, parecem totalmente legíveis, assumem nuances surpreendentes quando vividos através de uma lente diferente. Assim, a história não apenas se aprofunda, mas a empatia do espectador por cada personagem se multiplica.

O roteiro, que venceu a Palma de Ouro em Cannes (o júri notavelmente elogiou sua habilidade em construir múltiplas camadas de significado), possui uma narrativa invejável e magistral: com cada iteração, novas peças são adicionadas — pequenos detalhes que mudam o que pensamos sobre ações mundanas. Não é simplesmente repetir a mesma informação, mas desembrulhar, depois remontar, mostrando como a “verdade” pode ser dobrada e torcida por perspectivas individuais. Os silêncios, as pausas, os espaços que ficam não ditos e as omissões deliberadas (ou acidentais) são tanto parte dos diálogos quanto as palavras ditas. É um equilíbrio delicado do que está em exibição e do que é mantido escondido.

A melancolia que permeia toda a história se entrelaça, de certa forma, com uma beleza real — não apenas visual, mas emocional. A dor das personagens, suas ansiedades e desentendimentos, acabam formando um retrato terno do que é ser humano. Esses ângulos, e a edição que transita entre eles, confirmam que somos seres com histórias parciais, a serem completadas apenas quando as vemos refratadas à luz de outro. Neste ponto, Monster dialoga com o próprio ato de assistir cinema: se alterarmos a lente, alteramos a trama.

Há também uma notável emoção na maneira como Kore-eda filma os espaços e silêncios. A fotografia — e, portanto, a maneira como a edição a difunde nos três atos — extrai a camada afetiva dos cenários. Salas de aula, casas simples, ambientes ao ar livre que por vezes parecem indiferentes às aflições dos protagonistas. Como é comum em muitos filmes japoneses, a natureza e os sons da vida cotidiana assumem contornos quase metafísicos, atuando como um eco para emoções contidas. Essa sobriedade também se aplica ao design de som, que reforça a sensação de que tudo — do ambiente escolar às casas familiares — pode atuar tanto como santuário quanto prisão.

Quando a terceira versão da história finalmente aparece, há algo cirúrgico em como o espectador é convidado a (re)interpretar cada fio que já foi tecido. É aqui que se vê o gênio da estrutura: não é tanto uma “história” surpreendente, mas um mosaico que só faz sentido completo quando montado. E ainda assim, Kore-eda não nos entrega todas as respostas — em vez disso, ele propõe que a “verdade” possa ser algo maior do que os seres a ela conferidos podem compreender totalmente.

O elenco é incrível. Os atores — especialmente as crianças — dão à narrativa uma sinceridade que beira a crueza. Embora Kore-eda sempre tenha demonstrado habilidade em dirigir elencos infantis (vide Ninguém Sabe), em Monster há uma intensidade silenciosa que permite ao espectador mergulhar na dor e nos segredos dos personagens de maneira visceral.

A trilha sonora, último trabalho do gênio Ryuichi Sakamoto, é também um ponto alto do filme, harmoniza perfeitamente com tudo isso: a trilha musical é tão esparsa que realça a emoção nos momentos-chave. Fiel à edição, a música não é uma muleta dramática habitual. Antes, é um subtexto que espelha a dimensionalidade das três versões da história.

Embora seja impossível não pensarmos em Rashômon de Akira Kurosawa, pela utilização de múltiplas perspectivas, Kore-eda se utiliza do recurso de forma muito pessoal, com compaixão e laços familiares em vez de um debate filosófico sobre a verdade. Desse modo, Monster se aproxima mais do que nunca do tom humano e sensível que o diretor aperfeiçoou desde o início de sua carreira, ao mesmo tempo em que lida com os clichês do cinema japonês.

Monster é um filme triste, belo, que usa a edição de forma única para acentuar a subjetividade de cada perspectiva de personagem e, por extensão, de cada espectador. Kore-eda mais uma vez evoca uma profunda empatia pela humanidade em sua impermanência e na insensatez de seus desejos, criando uma fábula moderna que revela beleza dentro da dor e amplitude na suposta simplicidade do amor. A excelência do roteiro atesta a dimensão universal da história: todos nós, de uma forma ou de outra, estamos entrelaçados nessa rede de mal-entendidos, silêncios, omissões e revelações que definem nossa existência. É um filme que permanece muito tempo depois de as luzes se apagarem e faz exatamente o que a melhor arte pode fazer.

As questões sociais também aparecem no filme, de certa forma, como uma observação sobre o papel das instituições, neste caso da escola, como um microcosmo social. O filme parece criticar a maneira de bullying e diferenciação na sociedade japonesa, mas não de forma panfletária, e sim no olhar e na atitude dos protagonistas. Esta camada confere uma riqueza ao drama, que não é apenas um estudo de personagem, mas também um observatório de comportamentos familiares à comunidade escolar.

Em muitos momentos, Kore-eda utiliza pausas e silêncios para construir tensão. Esses momentos “entre as linhas” são fundamentais para a sensação de que algo mais profundo está em jogo — traumas, segredos, mal-entendidos. Na edição, novamente, esses vazios são entrelaçados de maneira que evocam uma verdade que transborda as palavras.

Esses aspectos de Monster provam ser tão esteticamente agradáveis quanto emocionais, reafirmando o toque de Kore-eda para histórias que permanecem com o espectador muito depois que a mensagem de “Fim” aparece na tela.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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