A Ucrânia da liberdade e da esperança

Ivam Cabral
Ator e dramaturgo
Da psicanálise e do teatro, também

 

As crises que sempre marcaram a história da nossa nação,
destruíram a riqueza do Estado e a garra do povo.
No entanto, tais crises guardavam o segredo
que leva os corruptos à prosperidade.
Estes parasitas souberam, durante todos esses séculos,
obter todas as vantagens possíveis à custa do sangue do povo.
Marquês de Sade, Os 120 Dias de Sodoma

Em 1993 eu tinha 30 anos. Vivia em Lisboa e costumo chamar essa fase da minha vida de heroica. Nesse ano aconteceu de tudo. Com nosso espetáculo A Filosofia na Alcova, que havia estreado em Lisboa com enorme sucesso, fizemos os dois dos maiores festivais de teatro do mundo: o de Avignon, na França; e o de Edimburgo, na Escócia; além de viajar muito com o trabalho. A obra, inspirada no Marquês de Sade, causava alvoroço por onde passava, sempre com plateias lotadas e bastante espaço na imprensa.

Em Edimburgo, fomos processados pela Associação da Moral e dos Costumes Escoceses, que quase conseguiu a nossa deportação do Reino Unido. O motivo: cismaram porque cismaram que fazíamos sexo ao vivo. O imbróglio só foi resolvido quando a polícia atestou que o que fazíamos no palco do Theatre Workshop, um dos teatros mais respeitados do festival, era o velho faz de conta.

Então, pela superexposição conseguida em Edimburgo, fomos convidados para apresentações em Londres, no cultuadíssimo BAC – na época o templo da experimentação no mundo –; e no Teatro da Juventude, de Kiev, na Ucrânia.

Aqui, uma crítica de Philosophy in the Alcove, no jornal The Times, quando nos apresentamos no Battersea Arts Centre, de Londres:

O convite para apresentações em Kiev veio do grupo Podol-Art-Proekt, que na altura também trabalhava na Escócia. Assim, em dezembro daquele 1993, passamos 15 dias na Ucrânia e foi das experiências mais incríveis da minha vida.

Tudo era muito estranho para nós. O país, que até 1992 pertencia à União Soviética, começa naquele momento a ensaiar os caminhos para a democracia e liberdades todas. De expressão, sobretudo.

A divulgação para as apresentações da peça era enfática. Podia-se ler no cartaz:

Não esperem do espetáculo um encobrimento envergonhado dos abismos negros da alma e do corpo humano. Se os senhores temem ofender seus sentidos, é melhor evitar o espetáculo.

Mas havia uma coisa muito bonita ali. Nós, Satyros, éramos a primeira companhia ocidental a se apresentar no país, após a desintegração da União Soviética. E liberdade, principalmente de expressão, era tudo o que os artistas e intelectuais ucranianos, naquele momento, ansiavam.

Ficamos hospedados na luxuosa hospedaria do Partido Comunista, que, em tempos soviéticos, era o local onde se acomodava a alta cúpula do partido. Quartos enormes e confortáveis, na periferia de Kiev, em meio à Floresta Holosiivskyi. Fazia muito frio e nevava muito. Meu primeiro boneco de neve foi construído ali, em dias felizes e cheios de esperança.

A Floresta Holosiivskyi, hoje Parque Natural Nacional Holosiivskyi, com mais de 11 mil hectares de terras florestais, é um lugar onde a natureza se torna história. Entre suas principais belezas, estão os carvalhos seculares, alguns com mais de 500 anos. Alces e raposas convivem com espécies raras de aves, em um território que, há mais de mil anos, ajudou nossos ancestrais a construir a Rus e a fé cristã.

Nesse clima, entre liberdade e muita esperança, no dia 4 de dezembro de 1993, um sábado, estreávamos no Teatro da Juventude, na rua Prorizná, bem no centro da cidade de Kiev, o nosso Philosophy in the Alcove, totalmente interpretado em inglês, com apontamentos em ucraniano.

Na segunda-feira, o jornal Nezavisimaya Gazeta trazia uma crítica, que afirmava:

Talvez o Marquês de Sade e o teatro brasileiro não estejam totalmente errados ao encarar o ser humano como um animal que não vive pela razão, mas por instinto.

Nunca uma crítica – e o Marquês de Sade – fez tanto sentido! O que estamos acompanhando, neste momento, é exatamente isso. O que Putin faz com o mundo é fruto de seu instinto irracional e, mesmo que busquemos alguma racionalidade, vamos limitá-la às suas vísceras.

Nada justifica esta guerra. Nem se olharmos para o imperialismo americano que, dizem alguns, está aí para ameaçar a paz mundial e, quando confrontados, irão colocar em perspectiva a crise de Israel com a Palestina, ou do próprio Estados Unidos com o Iraque.

Guerra é guerra sempre e temos que tomar partido, sim. Não só porque ameaçam – e destroem! – economias e famílias e cidades e amores. Mas, sobretudo porque roubam de nós as nossas histórias. Porque, em 1993, eu era um jovem de 30 anos e tinha a expectativa do porvir, mais nada. Tirassem isso de mim, naquele momento, e eu não seria nada.

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