Foi no dia em que eu descobri que o mundo ia se acabar que eu soube, também, que a tia Emenegilda ia fazer voto de pobreza. Ela era bem velhinha, de cabelos brancos e, por causa do sobrepeso, andava apoiada em uma bengala. Quer dizer, velhinha era o que eu pensava que ela era, porque fiz as contas um tempo atrás e descobri que ela tinha 56 anos nesta altura. Mais nova do que eu hoje. Mas não importa porque velhinha é o que diziam que ela era lá, em Ribeirão Claro, e eu sempre acreditei nas pessoas da minha cidade.
Tia Emenegilda era muito, muito rica. Nascida na Itália, era filha única de um imigrante que havia chegado na cidade nos anos 1930 para tentar uma vida nova no novo mundo. Acontece que o percurso do seu Giacomo não foi tão tranquilo assim. Morreu queimado, tentando apagar um fogo que destruiu sua casa, em uma das secas que abateram a cidade, na tentativa de salvar sua esposa Giorgia, que também morreu no incêndio, enquanto a única filha do casal estudava no Internado do Ginásio Paranaense, em Curitiba.
Foi assim que tia Emenegilda se viu sozinha aos 15 anos e teve que abandonar a escola para cuidar das coisas dos pais. Nesta altura, conheceu o Demetrio que era filho do Doroteu, um tio do meu pai. Eu não conheci o tio Demétrio que morreu antes do meu nascimento. Mas sabia tudo da vida Emenegilda porque sua história sempre me fascinou.
Tia Emenegilda e tio Demetrio não tiveram filhos porque trabalharam muito e não tiveram tempo para namorar. Me lembro de nossa tia dizer isso uma porção de vezes. Teve até uma história que eu ouvi de umas primas que a tia Emenegilda nunca tinha feito sexo com o marido. Essa parte da história eu não sei se era verdade, mas que o casal trabalhou muito isso eu afirmo, de pés juntos e mãos cruzadas, porque os dois construíram uma verdadeira fortuna. Compraram muitas terras e muitas casas e até uma olaria que depois fabricava cimento e que foi vendida para o grupo Votorantim, exatamente nesta época que a tia Emenegilda resolveu ficar pobre.
Doou tudo, tudinho mesmo, para a Cúria Romana do Vaticano. Vejam só que chique! Veio até advogado de São Paulo pra resolver os trâmites. Tia Emenegilda dizia:
— É pra Itália que quero deixar o meu suor!
Na época, me lembro das pessoas dizendo que a nossa tia era a coisa mais linda e abnegada do mundo inteirinho. Elogiavam seu ato de bravura e toda a sua linda ação. O que eu não entendo hoje é por que ela não ajudou seus familiares que eram tão pobres, meu Deus? Se vocês tivessem conhecido a casa onde cresci, certamente ficariam abismados com a decisão da tia Emenegilda.
Então foi assim. Um dia a tia Emenegilda chega em casa, eu devia ter nove anos, mais ou menos. Chegava sempre em uma charrete toda colorida e estilosa, gritando:
— Quem vem me ajudar?
Neste dia fui eu. Era difícil fazer a tia Emenegilda descer ou subir na charrete. Ela tinha seríssimos problemas de locomoção. Ao ver minha mãe, dizia todas às vezes que se encontravam:
— Eunicinha, minha sobrinha favorita!
E daí começava a falar e gesticular muito e fazer muitas caretas. Tia Emenegilda falava também com as expressões do rosto, arregalando olhos e bocas quando queria demonstrar surpresa. E falava engraçado. O erre dela era “ere”. Então, carroça virava “caroça”, barranco virava “baranco” e “aborecida” era o que dizia quando estava aborrecida.
— Descobri que o mundo vai acabar e decidi. Vou fazer o meu voto de pobreza que sempre quis, informou naquela visita, enquanto abria seus olhões e sua bocona.
Nossa, quando ouvi aquilo, de que o mundo ia se acabar, grudei na conversa das duas e não arredei o pé. Queria saber tudo sobre o fim dos tempos que me causou, ao mesmo tempo, um misto de horror e de fascínio.
Mas o que a minha mãe e a minha tia falaram naquela tarde não foi sobre o fim do mundo, mas o que ela estaria preparando.
— Se vou fazer um voto de pobreza, não posso desejar riqueza aos outros, Eunicinha. Por isso não ajudarei ninguém com o meu dinheiro. Porque quero todos nós juntinhos no céu.
E foi assim que a tia Emenegilda ficou pobre, fazendo uma grande festa onde matou bois, carneiros, leitoas, cabritos e galinhas, convidou todo mundo para brindar a sua miséria, enquanto, segunda ela, doava tudo, tudinho, para a Cúria Romana do Vaticano.
Quando morreu, uns dez anos depois deste dia, soubemos que a única pessoa beneficiada pela fortuna da tia Emenegilda tinha sido o Infâncio, que na época da morte da nossa tia vivia no Asilo São Vicente de Paula e que, fraquinho da memória, de repente começou a falar que tinha passado a vida toda pulando a janela do quarto da nossa tia, nas madrugadas, e que a tia fazia com ele coisas que até Deus duvidaria, se soubesse.
Sobre esses detalhes mais sórdidos da vida da nossa tia Emenegilda, que fez voto de pobreza, eu não saberei afirmar se são reais ou fruto da imaginação do velho Infâncio. Mas que a tia Emenegilda transferiu uma verdadeira fortuna pro homem, isso é verdade, verdadeira. Porque quanto o velho morreu foi uma briga danada na família dele. Os filhos descobriram aquela bolada na conta do homem e foi gritaria pra todo lado.
E sabem em que ano o velho Infancio morreu? Em 2000, exatamente no ano em que a tia Emenegilda proferia o mundo se acabaria.