A HERANÇA DO TEATRO DOIS

André Fusko e eu em cena de "O Anjo do Oavilhão Cinco", de Aimar Labaki, direção de Emilio Di Biasi, de 2006, uma das inúmeras peças em que atuei (foto: Lenise Pinheiro)

Isso aconteceu há uns anos. Minha mãe sofrera um enfarte num dia em que eu estava em cena. Ela vivia em Curitiba; eu,  em São Paulo. Na época, eu atuava em dois espetáculos, um de segunda a quarta; outro, de quinta a domingo. Era uma segunda-feira e recebi a notícia de tardezinha. Não preciso dizer que fiquei arrasado. Mas o teatro que eu estava aprendendo a fazer não me permitia chegar ali, para o elenco, e dizer: “Esperem um pouco, minha mãe tá morrendo e eu preciso vê-la”.

Mas eu era jovem demais pra entender certas coisas. E não era a primeira vez que encontrava um problema familiar no meio do caminho. Lá no início da minha carreira, quando estreei a minha primeira peça profisisonal, um dos meus irmãos, o Cláudio, se casou meio às pressas e eu não fui ao seu casamento porque também estava em cena, aqui em São Paulo.

Não me ocorreu, naquele momento, cancelar aquela apresentação. Afinal, o teatro que eu estava apreendendo era um teatro de sacerdócio. Não, não passou pela minha cabeça chegar ali e dizer algo como: “Olhe, o Cláudio, meu irmão, uma pessoa que eu amo muito, um grande amigo, está se casando hoje e eu vou ter que suspender a peça. Me deixem festejar um pouco e volto em seguida”.

Mal saberia eu que esse vazio ficaria eternamente na minha alma. Vez por outra, o álbum de fotografias daquele casamento aparece e, em todas essas vezes, tento me reconhecer naquelas imagens. Quando me certifico que nada de mim aparece por ali, me bate uma dor do tamanho do céu. Afinal, Cláudio é meu irmão querido, um ano e oito meses de diferença, e um amigo, grande mesmo.

Naquela noite, a do casamento do meu irmão, tivemos oito pessoas na plateia.

Mas eu estava falando da vez em que minha mãe enfartou. Pois bem, cheguei ao teatro naquela segunda-feira, coração partido, olhos esbugalhados e encontro o elenco discutindo se haveria ou não espetáculo. Porque estava muito frio e talvez tivéssemos poucos espetadores. Meu mundo se despedaçou naquele momento. Desabei, perdi o horizonte, o norte, o sul. Pensei: “Como vou explicar a mim mesmo o por quê da minha ausência num dos momentos mais terríveis da história da minha família? Vou dizer o quê? Que não fizemos aquela peça porque estava frio?”

Não, eu faço esta apresentação mesmo que seja pra uma pessoa, uma só. Ou mesmo que não venha ninguém. Faço pro vento, pro frio. E quer saber? Fodam-se vocês, a falta de otimismo e de perspectiva. Foda-se o mundo de vocês. Foda-se a história de vocês. Foda-se o respeito que vocês têm por mim e pela minha mãe. Fodam-se as críticas negativas, todas elas, que recebi por este trabalho. Foda-se a delícia que foi conhecer vocês, aquele texto, aquele momento da minha vida.

Pois é. Foi tudo isso que pensei naqueles poucos minutos. Mas não consegui dizer muita coisa. Me limitei a contar, em pouquíssimas palavras, que estava ali apenas pra fazer a peça num dos momentos mais difíceis da minha vida.

Um dos atores, ainda, quis discutir o número mínimo de pessoas para quem faríamos aquela apresentação. Eu me recusei a participar daquela conversa. Fiz, faço e faria para um único espectador. Não discuto mais isso. Sou um ator de sucesso, um profissional de sucesso. Mereço pensar e discutir coisas mais nobres. Pensei tudo isso também. Mas me limitei a chorar por dentro.

Na noite em que dediquei aquele espetáculo à minha mãe, apareceram 11 espectadores no teatro.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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