Meu amigo que queria morrer

Acordei hoje me lembrando de uma história. A história de um amigo português que vive em Lisboa e que um dia quis morrer. Aconteceu assim: ele estava apaixonado e vivendo um grande momento de sua vida quando, aos 40 anos, descobriu que tinha uma doença terminal. Viveria no máximo três ou quatro anos. Decidiu, então, não contar nada a ninguém. Guardaria este segredo – dividido, um tempo depois, com poucos amigos.

Neste momento, sua família não sabia o que fazer com a avó, 80 e tais anos, que vivia na província, e que, com a recente morte do marido, ficara sozinha numa grande casa. A casa da infância dele, dos natais coloridos, das noites de calor, das férias de verão.

Então a avó, lá, sozinha e a família pensando em interná-la numa casa de repouso. Daí, ele pensou, pensou. Por fim, decidiu trazê-la para viver com ele em Lisboa.

Mas lembram-se que eu disse que este meu amigo estava apaixonado? Pois, tinha um namorado que não aceitou sua decisão. Esbravejou:

– Você enlouqueceu!

Aliás, não só o namorado. Todos nós, amigos próximos, tínhamos certeza de que ele realmente estava tomando uma decisão precipitada.

Mas o amor – ou a culpa, ou medo da solidão e da morte, ou o desespero do fim, ou sei lá o quê – fez com que ele não arredasse pé de sua decisão. Terminou o relacionamento com o namorado, brigou com alguns amigos e foi dividir o teto com a avó que, após poucos meses,  começou a desenvolver a doença de Alzheimer.

Embora com um quadro de doenças terríveis, neto e avó tinham uma vivacidade impressionante. Esperaram pela morte que, afinal, não veio. Vivem juntos até hoje, há mais de dez anos.

Com saudade, hoje telefonei para o meu amigo. Ele estava feliz. Me contou que acabara de chegar da França, onde passou quinze dias com a avó numa estação de esqui. E que não estava arrependido em ter reformulado a sua vida e que esta história tinha feito dele um novo homem.

– Tive que reaprender muitas coisas e realocar os meus amores –  me confidenciou.

Enquanto falava com ele, ia pensando nas relações humanas. Em suas construções e idiossincrasias. E nos finais também. Que, afinal, nunca revelam nada de surpreendente. Porque fim é sempre fim. No caso deles –  e no meu, por que não? –, a morte que virá em algum momento. O que importa, afinal, é a complexidade das relações, a construção de novos modelos, de novos paradigmas. Surpreendente, neste caso, é a vida.

Quase no final da conversa, meu amigo me segreda:

– Descobri que um suspiro ou um respiro é tudo o que eu quero para a minha vida.

– Por que ele pode ser o último?, pensei.

Daí, desliguei o telefone e fiquei querendo viver. Pensei na vida e no tempo. Afinal, mais de dez anos separam o meu amigo do diagnóstico terrível de uma morte que não veio. Considerei que preciso também realocar os meus amores. Afinal, como diz um outro amigo querido, bom seria se a vida fosse um ensaio e que a gente pudesse, depois de intermináveis repetições, vir aqui para fazer a estreia triunfal. Mas, não, viver não é para amadores e a vida – ainda bem! – está muito além da representação.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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