A chamada é do meu condomínio em Parelheiros, então eu atendo rapidamente. Estou no centro e, nestas ocasiões, raramente recebo algum telefonema de lá. Do outro lado, Gil, um dos moços da portaria. Ele está afobado. Enquanto fala, vou ouvindo, ao fundo, uma mulher que grita, aos prantos.
— Ivam, a dona Lorraine está aqui na portaria e está desesperada. Sua cachorra de 15 anos morreu e ela não sabe o que fazer.
A conversa evolui e vou sabendo mais do ocorrido. Minha vizinha, que não conheço pessoalmente, tem perto de 75 anos, vive só com duas cachorras – uma delas que acabara de morrer –, está sozinha e não sabe o que fazer com o corpo de seu animal.
— Ela só tem 10 reais neste momento.
Eu peço pra eles se acalmarem, digo que não estou no condomínio, mas que vou tentar fazer alguma coisa. Enquanto falo, ainda escuto a mulher do outro lado da linha que chora e vocifera palavras ininteligíveis.
Desligo o celular com o coração disparado. O que fazer se estou a duas horas de Parelheiros e tenho compromissos pelo centro da cidade? Ligo para um hospital veterinário que fica relativamente próximo ao nosso endereço e fico sabendo que eles podem receber o corpo do animal, mas que não possuem serviço de transporte. Então, me ocorre fazer um pedido de socorro no grupo de whatsapp dos moradores do meu residencial. Escrevo:
𝘗𝘦𝘴𝘴𝘰𝘢𝘭, 𝘱𝘳𝘦𝘤𝘪𝘴𝘰 𝘥𝘦 𝘢𝘫𝘶𝘥𝘢. 𝘕ã𝘰 𝘦𝘴𝘵𝘰𝘶 𝘯𝘰 𝘳𝘦𝘴𝘪𝘥𝘦𝘯𝘤𝘪𝘢𝘭 𝘩𝘰𝘫𝘦, 𝘪𝘯𝘧𝘦𝘭𝘪𝘻𝘮𝘦𝘯𝘵𝘦, 𝘦𝘯𝘵ã𝘰 𝘯ã𝘰𝘤𝘰𝘯𝘴𝘪𝘨𝘰 𝘢𝘫𝘶𝘥𝘢𝘳. 𝘚𝘦𝘨𝘶𝘪𝘯𝘵𝘦: 𝘶𝘮𝘢 𝘮𝘰𝘳𝘢𝘥𝘰𝘳𝘢 𝘥𝘢í, 𝘥𝘢 𝘳𝘶𝘢 𝘊𝘩𝘢𝘳𝘭𝘦𝘴 𝘴𝘵𝘢𝘯𝘧𝘰𝘳𝘥, 𝘢 𝘥𝘰𝘯𝘢𝘓𝘰𝘳𝘳𝘢𝘪𝘯𝘦, 𝘱𝘦𝘳𝘥𝘦𝘶 𝘴𝘦𝘶 𝘤𝘢𝘤𝘩𝘰𝘳𝘳𝘰 𝘩𝘰𝘫𝘦. 𝘖 𝘢𝘯𝘪𝘮𝘢𝘭 𝘵𝘪𝘯𝘩𝘢 15 𝘢𝘯𝘰𝘴 𝘦 𝘦𝘭𝘢 𝘦𝘴𝘵á 𝘮𝘶𝘪𝘵𝘢 𝘯𝘦𝘳𝘷𝘰𝘴𝘢 𝘦𝘯ã𝘰 𝘴𝘢𝘣𝘦 𝘰 𝘲𝘶𝘦 𝘧𝘢𝘻𝘦𝘳. 𝘌𝘶 𝘭𝘪𝘨𝘶𝘦𝘪 𝘱𝘳𝘰 𝘏𝘖𝘝𝘌𝘛-𝘗𝘖𝘗, 𝘢í 𝘥𝘦 𝘗𝘢𝘳𝘦𝘭𝘩𝘦𝘪𝘳𝘰𝘴, 𝘦 𝘦𝘭𝘦𝘴 𝘳𝘦𝘤𝘦𝘣𝘦𝘮 𝘭á 𝘰𝘴 𝘢𝘯𝘪𝘮𝘢𝘪𝘴 𝘮𝘰𝘳𝘵𝘰𝘴 𝘲𝘶𝘦 𝘢 𝘱𝘳𝘦𝘧𝘦𝘪𝘵𝘶𝘳𝘢 𝘳𝘦𝘤𝘰𝘭𝘩𝘦 𝘥𝘦𝘱𝘰𝘪𝘴. 𝘗𝘳𝘰𝘣𝘭𝘦𝘮𝘢: 𝘢 𝘥𝘰𝘯𝘢 𝘓𝘰𝘳𝘳𝘢𝘪𝘯𝘦 𝘯ã𝘰𝘵𝘦𝘮 𝘥𝘪𝘯𝘩𝘦𝘪𝘳𝘰, 𝘯𝘦𝘮 𝘤𝘢𝘳𝘳𝘰. 𝘖 𝘥𝘪𝘯𝘩𝘦𝘪𝘳𝘰 𝘦𝘶 𝘢𝘳𝘳𝘶𝘮𝘰, 𝘴𝘦𝘮 𝘱𝘳𝘰𝘣𝘭𝘦𝘮𝘢𝘴. 𝘌𝘯𝘵ã𝘰, 𝘱𝘳𝘦𝘤𝘪𝘴á𝘷𝘢𝘮𝘰𝘴𝘥𝘦 𝘢𝘭𝘨𝘶é𝘮 𝘲𝘶𝘦 𝘭𝘦𝘷𝘢𝘴𝘴𝘦 𝘰 𝘤𝘢𝘤𝘩𝘰𝘳𝘳𝘰 𝘢𝘵é 𝘰 𝘏𝘖𝘝𝘌𝘛-𝘗𝘖𝘗 (𝘳𝘶𝘢 𝘏𝘦𝘯𝘳𝘪𝘲𝘶𝘦 𝘙𝘰𝘴𝘤𝘩𝘦𝘭 𝘊𝘩𝘳𝘪𝘴𝘵𝘪, 900, 𝘲𝘶𝘦 𝘧𝘪𝘤𝘢 𝘱𝘦𝘳𝘵𝘰 𝘥𝘢í). 𝘚𝘦𝘳á 𝘲𝘶𝘦 𝘢𝘭𝘨𝘶é𝘮 𝘤𝘰𝘯𝘴𝘦𝘨𝘶𝘪𝘳𝘪𝘢 𝘯𝘰𝘴 𝘢𝘫𝘶𝘥𝘢𝘳 𝘤𝘰𝘮 𝘪𝘴𝘴𝘰?
O grupo, normalmente solícito, se cala. Uma única moradora vem falar comigo, a Stefania, casada com o Neto. Os dois acabaram de ter um bebê, o Otto.
𝘈𝘮𝘰𝘳𝘦, 𝘦𝘴𝘵𝘰𝘶 𝘤𝘰𝘮 𝘰 𝘱𝘦𝘲𝘶𝘦𝘯𝘰… 𝘚𝘦𝘯ã𝘰 𝘫á 𝘦𝘴𝘵𝘢𝘳𝘪𝘢 𝘯𝘰 𝘤𝘢𝘳𝘳𝘰 𝘭𝘦𝘷𝘢𝘯𝘥𝘰 𝘦𝘭𝘦𝘴 𝘢𝘵é à 𝘤𝘭í𝘯𝘪𝘤𝘢. 𝘚𝘦𝘮𝘦𝘴𝘮𝘰 𝘢𝘴𝘴𝘪𝘮 𝘯𝘪𝘯𝘨𝘶é𝘮 𝘴𝘦 𝘱𝘳𝘰𝘯𝘵𝘪𝘧𝘪𝘤𝘢𝘳, 𝘮𝘦 𝘢𝘷𝘪𝘴𝘢? 𝘉𝘰𝘵𝘰 𝘵𝘰𝘥𝘰 𝘮𝘶𝘯𝘥𝘰 𝘯𝘰 𝘤𝘢𝘳𝘳𝘰 𝘦 𝘷𝘰𝘶.
Stefania e Neto são meus vizinhos queridos e eu realmente não gostaria de incomodá-los. Mas, depois de muitos telefonemas, não consigo ninguém e no finalzinho da tarde entro em contato com o casal dizendo que realmente precisamos ajudar a dona Lorraine. O Neto prontamente se disponibiliza e vai até à casa da senhora.
Um tempo depois, Neto me liga dizendo que havia procurado a dona Lorraine que, ainda em estado de choque, o informa ter cavado “um buraco muito fundo” no quintal, durante quatro horas, e enterrado sua companheira de 15 anos. Cavou por quatro horas!
Neto ainda tenta convencer a moradora de que não se deve enterrar animais em jardins e quintais; tenta convencê-la de recolher o animal e levá-lo para um hospital veterinário para que possa ter um final com alguma dignidade, mas a mulher é enfática e não permite que o final da história seja alterado.
— Dona Lorraine estava em estado de choque, Ivam. Disse que ia encher a cara para esquecer este dia.
Desliguei o telefone e chorei. Fiquei pensando na solidão daquela senhora de 75 anos e que, ainda com um fiapo de força, consegue cavar “um buraco bem fundo” para enterrar sua companheira de 15 anos.
Ah, a vida, sempre tão imprevisível e tão mais complexa… Então, para me acalmar um pouco, fui ler Manoel de Barros.
É. Só mesmo a poesia para conseguir nos acalmar. E nos salvar.