Surgido no Paraná no início dos anos 1980, o Grupo Delírio rapidamente se transformou em um dos mais potentes coletivos teatrais do Brasil. A linguagem arrojada, a minuciosa concepção visual dos espetáculos e a entrega total dos atores no palco são algumas das características dessa companhia que tem uma assinatura estética inconfundível. Lembro-me bem do impacto ao assistir suas montagens, quando ainda era estudante em Curitiba. Eram peças surpreendentes, de uma precisão cênica inconfundível, saíamos sempre boquiabertos do teatro.
Um pouco dessa história está narrada no livro “O Meu Delírio – Textos e Memórias de Encenação”, tão bem escrito pelo Edson Bueno, diretor e um dos fundadores do grupo. O volume contém o texto de quatro peças teatrais: “Um Rato em Família” (1984), “New York por Will Eisner” (1990), “Vermelho Sangue Amarelo Surdo” (2003) e “Metamorphosis” (2005).
Na primeira peça, temos o drama de uma família disfuncional, libertina e paranoica vivendo em meio à decrepitude física e moral. Em seguida, The Spirit, Gerhard Shnobble e as criações idiossincráticas do quadrinista americano encarnadas no palco. Na terceira, todas as cores mentais e a complexidade de Vincent van Gogh. Por fim, uma adaptação da célebre novela de Franz Kafka, em exercício metalinguístico que coloca frente a frente criador e criatura – literalmente falando.
São textos bastante representativos, uma ótima síntese da trajetória do grupo. A dramaturgia de Edson Bueno é de um requinte raro. O pleno domínio do tempo dramático, a sintaxe harmônica de cada discurso, o conteúdo ficcional rico e provocador, as réplicas e tréplicas ágeis, uma gramática cênica meticulosamente estruturada. Seja quando cria histórias originais ou faz adaptações literárias, o talento do autor resplandece. Percebe-se pela leitura de cada um dessas peças todos os códigos cênicos que, posteriormente, no palco, irão saltar aos olhos do espectador: o ritmo, a respiração dos atores, as gags, o sarcasmo, a súbita ironia no subtexto…
Como ator e dramaturgo, posso afirmar sem dúvida alguma que o Delírio é um desses grupos que me estimulam artisticamente. O tratamento estético, as soluções cênicas que trazem para a cena, os temas intrigantes que o autor decide transformar em teatro irretocável e preciso.
Embora o panorama cênico brasileiro seja riquíssimo, com coletivos que abordam centenas de diferentes pesquisas e linguagens, são poucos os grupos que conseguem a longevidade, o reconhecimento crítico e a projeção nacional – tanto em termos de divulgação quanto de circulação de espetáculos –, fato alcançado com louvor pelo Delírio. O livro traz ainda depoimentos de atores e parceiros sobre as montagens, curiosidades históricas fascinantes, uma série de fotos de cena, cartazes e fac-símiles.
Belíssima obra essa de Edson Bueno, diretor com mais de 80 espetáculos encenados, sendo mais da metade de sua autoria, artista laureado com várias edições do Troféu Gralha Azul e do Troféu Poty Lazzarotto. Leitura obrigatória para todos os paranaenses (como eu) ou não, mas, sobretudo, para os amantes do teatro brasileiro.