Por MIGUEL ARCANJO PRADO
O frio intenso de maio em São Paulo remetia aos ares gélidos britânicos na estreia da peça Looking for Andy, criação de Aleksandar Dunderović e Stephen Simms, artistas do Royal Birminghan Conservatoire, de Birmingham, na Inglaterra, Reino Unido, em parceria com a Cia de Teatro Os Satyros, do Brasil, com apoio da SP Escola de Teatro. Os britânicos estabeleceram relação mais intensa com o Satyros durante a pandemia, por meio dos cosmopolitas Rodolfo García Vázquez e Ivam Cabral em suas experimentações no teatro digital, que renderam o livro Live Digital Theatre: Interdisciplinary Performative Pedagogies, escrito por Dunderović e lançado neste ano pela editora Routledge – um documento histórico do teatro na pandemia a partir das experiências das companhias Kolectiv Theatre (Reino Unido), Teatro Os Satyros (Brasil) e The Red Curtain International (Índia).
Vestido com casacos pesados, o público do mais icônico espaço do teatro underground brasileiro parecia ávido para conferir de perto a parceria internacional fruto de um fascínio de seus criadores por uma das mais importantes figuras da arte do século passado, Andy Warhol (1928-1987), o papa da pop art que fez Nova York ferver entre as décadas de 1960 e 1980, até que o maldito vírus HIV dizimasse toda uma geração que ousou ser liberta.
Quando o público adentrou a escura sala do Satyros, Simms já estava sentado em um canto caracterizado como Warhol, com quem se parece, como uma impactante imagem receptiva. Como todos acomodados, o ator surgiu como um pesquisador desejoso por revelar sua pesquisa sobre a técnica da pop art desenvolvida por Warhol, com ajuda de Camila Ismerin reproduzindo e colorindo os desenhos, enquanto que a atriz Sabrina Denobile, que mais tarde incorpora sua mãe — figura crucial na trajetória do artista —, faz a tradução simultânea.
Um breve parêntesis: ainda sobre a técnica da pop art de Warhol, é preciso lembrar que nesta semana a Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu que Andy Warhol violou direitos autorais ao usar fotografias do cantor norte-americano Prince (1958-2016) tiradas pela fotógrafa Lynn Goldsmith, 75 anos, que receberá royalties da Fundação Andy Warhol para Artes Visuais. Ou seja, a pop arte continua polêmica.
Bom, voltemos à cena, no palco. Pucos minutos após iniciada a peça, o protagonista dispensa a tradução e garante que tem certeza de que o público brasileiro vai entender (quase) tudo que ele disser em inglês britânico.
Isso fica mais fácil para quem já tem informações prévias sobre a tumultuada vida de Andy Warhol, recentemente foco do ótimo documentário da Netflix Os Diários de Andy Warhol, com seis frenéticos episódios de um ser humano que fez da arte seu oxigênio diário. Quem não viu precisa assistir correndo. Mas, voltemos à peça.
Stephen Simms, saído com louvor da prestigiosa Real Academia de Arte Dramática (Rada) em Londres, é um excelente ator, dono de verdade cênica incontestável e que mergulha com toda a segurança do mundo em seu temperamental Warhol, dividido entre paixões momentâneas, enquanto é soberano em seu pequenino reinado underground nova-iorquino, que reflete muito do espírito artístico em qualquer lugar do mundo, inclusive do Brasil.
O espetáculo cresce ao fazer a simbiose do artista à figura de um vampiro, que vai tragando as interessantes vidas (e belezas) ao redor para produzir sua pop art.
Vendo tal associação, este crítico se lembrou da música Vampiro, de Caetano Veloso, que diz: “Por isso é que eu sou um vampiro e com meu cavalo negro eu apronto e vou sugando o sangue dos meninos e das meninas que eu encontro”. Nada mais Warhol, Chelsea ou Praça Roosevelt.
Recursos típicos da performatividade fazem parte da construção do espetáculo pelo diretor Dunderović, que quebra a quarta parede e coloca o público na cena em diversos momentos da montagem e de forma mais vigorosa em seu grand finale com espectadores levados pelos atores para dançar em um Studio 54 inflável, criação dos cenógrafos Maria Sanchez (Reino Unido) e Antonio Cobo (Espanha).
Aliás, a lendária casa noturna norte-americana, onde Warhol batia ponto todas as madrugadas ao lado de nomes como a drag RuPaul Charles, a cantora Liza Minelli e o estilista Halston — cuja história está contada na excelente série Halston, na Netflix — é homenageada na parte final do espetáculo, com seu globo de luzes e corpos em lubricidade ao ritmo da disco music.
O espetáculo é feito, sobretudo, das conexões que Warhol construiu, seja com o jovem artista Jean-Michel Basquiat (com medo de que ele o superasse?), com as travestis, prostitutas e garotos de programa nova-iorquinos ou até mesmo com a feminista radical Valerie Solanis, que disparou três tiros em Warhol em 1968, acusando-o de roubar-lhe um roteiro, episódio que teve impacto profundo na vida do artista e também no The Factory, seu célebre e movimentadíssimo atelier.
O espetáculo britânico Looking for Andy conta com a participação dos atores brasileiros convidados Henrique de Mello, Sabrina Denobile, Marcia Daylin, Ingrid Oliveira, Alana Carrer e Ícaro Gimenes, que criam a atmosfera humana na qual Warhol escolheu viver, repleta de luxo e luxúria, décadence avc élégance.
Mello, Denobile e Carrer criam cenas profundas, unindo técnica a uma absoluta entrega performativa, impressionando o público. Mello faz uma catarse que arrepia qualquer pessoa sensível; já Denobile recria a complicada relação mãe-filho que atormentou Warhol por toda a vida; enquanto que Carrer incorpora a relação com a elite cafona necessária à sobrevivência da vida under de Warhol ou de qualquer artista. Afinal, sem um mecenas (ou herança) não é possível fazer muita coisa. Outra que se destaca por sua graça destemida é Dailyn, sempre um sopro de leveza na mais dura das cenas. Já Oliveira e Gimenes emprestam a presença de seus corpos como alegorias do entorno de Warhol.
A obra ainda tem no time técnico-criativo Camila Ismerim, Luís Felipe Leão, Edilena Malta, Igor Yabuta e Vinícius Nunes, artistas-estagiários frutos da parceria do projeto com a SP Escola de Teatro.
Looking for Andy não pretende ser um retrato documental da vida de Warhol (apesar dos vídeos do ator que o interpreta em sua natal Pensilvânia ou na Nova York escolhida), mas acaba sendo de certa forma, ao conseguir capturar o zeitgeist de Warhol, que antecipou muito do mundo que vivemos. Inclusive com o under elevado ao status quo — RuPaul Charles e suas drags-estrelas estão aí para provar, nesta era de questionamento problematizador do que antes era tido como vanguarda.
Afinal, a roda do mundo não se cansa em girar e derrubar paradigmas. Por mais que algumas visões de Warhol reproduzidas no espetáculo possam hoje ser vistas como esterotipadas, é preciso se lembrar que o cotidiano também é feito de clichês. Ao abraçá-lo o espetáculo não se leva tão a sério, assim como o artista que inventou a revista Interview, que abriu portas ao jornalismo de celebridades tal qual conhecemos hoje e a era do ego nas redes.
Aliás, o conceito de celebridade é do próprio Warhol, com todos hoje disputando seus 15 minutos de fama a qualquer preço, por uma curtida fugaz.
O Satyros abrigou a estreia mundial de Looking for Andy nesta sexta. Não custa lembrar que a obra faz apenas mais uma sessão neste sábado, 20 de maio, às 17h, com ingressos disputadíssimos e disponíveis na bilheteria do Espaço dos Satyros (Praça Franklin Roosevelt, 214, Centro, São Paulo). Depois, segue seu caminho rumo aos gélidos ares da Grã-Bretanha.
★★★★
Looking for Andy
Avaliação: Muito Bom
Crítica por Miguel Arcanjo Prado