‘Não gosto do erótico e, sim, do pornográfico’, diz Ivam Cabral

"Acho que no erótico você consegue ficar excitado. No pornográfico, não. É quando posso fazer um jogo com você", diz Ivam Cabral (foto: divulgação)

por JOÃO LUIZ VIEIRA

Ivam Cabral, paranaense, é ator, diretor, produtor e dramaturgo da companhia de teatro Os Satyros, além de dirigir a SP Escola de Teatro – Centro de Formação das Artes do Palco. Mais do que um grupo de artistas voltado para suas experiências cênicas, ele é líder de uma eclética fauna de profissionais que interage e provoca toda uma comunidade nos arredores de seus domínios, especificamente a região central de São Paulo.

Quando ali se instalaram, a Praça Roosevelt era um lugar quase inabitável para pessoas de bom senso. Passear por lá chegava a ser temeroso, tamanha escassez de política pública na área mal iluminada, suja e perigosa. Isso começou a mudar de uma década para cá, com a insistente e regular produção de espetáculos que pouco a pouco foi ganhando adesão de espectadores famosos, como Paulo Autran, só para ficar em um exemplo, e dos próprios marginais que viviam (ou sobreviviam) por lá. Alguns desses seres à margem – viciados, travestis, transexuais – também foram encontrando ali um espaço de expressão de identidade e ganharam endosso de cidadania.

A companhia está consolidada, chegou aos 25 anos exportando atores para a TV, embora as contas ainda não contemplem a irreal especulação imobiliária que cerca a hoje vistosa praça, e o grupo pensa até em mudar de CEP. Até a decisão, celebram o aniversário na Roosevelt, com a temporada de Édipo na Praça, texto de Cabral dirigido por Rodolgo García Vásquez, o outro mentor de Os Satyros. O dramaturgo também ensaia Adormecidos, de Jon Fosse, e escreve o roteiro de The Gift, coprodução Brasil-Polônia-Suécia que chega aos cinemas em 2014.

PPQO – Sexo é um tema muito recorrente no trabalho de Os Satyros. Por que ele é comum, vocês pensam nisso ou surge naturalmente tratar da sexualidade?

Cabral – É proposital. Vou voltar um pouco atrás. Um livro muito importante na minha formação é A Origem da Tragédia, do (Friedrich) Nietzsche. Passei a vida lendo, e quando eu cheguei de Curitiba a São Paulo pensava que fosse continuar estudando, não imaginava que conseguiria trabalhar como ator e ter uma companhia. Isso estava fora de questão, achava muito distante e difícil. Meu endereço era a Eca (Escola de Comunicação e Artes, USP), onde fazia pós-graduação.

Em menos de uma semana em São Paulo fui pedir informações na escola e vi um cartaz do Rodolfo (García Vázquez, diretor de Os Satyros) procurando atores. Foi muito bacana porque no dia em que me entrevistou ele estava com esse livro em mãos. E por que ele é fundamental? A gente vivia no teatro brasileiro uma coisa terrível, dominado por Gerald Thomas de um lado e Antunes Filho do outro.

PPQO – E o Zé Celso Martinez Corrêa?

Cabral – Neste momento, o Zé estava num “exílio”, involuntário. O Oficina que a gente conhece só surgiu em 1994, e estou falando de 1989. Também estavam no mercado Gabriel Villela e o Boi Voador. Tinha esse teatro, mas os dois determinavam as regras, mesmo para Gabriel e Ulysses Cruz. Gerald Thomas era o rei das formas, da luz, não do ator. O Antunes tinha um peso muito forte de diretor mais autoral, mas que não focava na expressão de um ator.

A gente achava que o teatro estava muito careta. E aí Nietzsche fala nesse livro sobre os dois elementos, o apolíneo e o dionisíaco, e toma a Grécia como exemplo. Fala que até aquele momento, século 19, o teatro só tinha encontrado sua plenitude na tragédia. Portanto, no início, lá trás, e nunca mais. Porque a tragédia não desprezou o dionisíaco, que eram os excrementos, o sangue, a embriaguez, o sexo. O meu mestrado girou em torno disso. Eu queria falar sobre isso, da ausência do dionisíaco na nossa cultura, especialmente no teatro.

Outra coisa que a gente pensava era que a arte caminhou com a sociedade no Brasil de mãos muito dadas até um período. O teatro falava da sociedade, e a partir de um momento isso também não aconteceu mais, como nos anos 1980. Tipo ninguém dava bola para o teatro, você poderia fazer o que quisesse. A gente vinha pensando de como o teatro poderia estar tão distante. Poxa, o Brasil naquele momento, fim dos anos 1980, caindo aos pedaços, a gente saindo da ditadura, e no mundo, o muro de Berlim desabando. Enfim, estávamos mudando de significado. Enquanto isso, nosso teatro estava burguês no sentido ruim.

PPQO – A dramaturgia também andava ruim?

Cabral – Acho que depois do Plínio Marcos nada mais acontece. E a gente teve Nelson Rodrigues, ou seja, um sinal muito potente que indicava o que poderíamos ser, mas não fomos. Foi bacana esse encontro com o Rodolfo e, provavelmente, a gente começou a trabalhar junto, e ele me aprovou, por causa dessa relação com Nietzsche. Os Satyros surgiu já pensando nessa questão da procura do dionisíaco, da embriaguez.

PPQO  – Você acha que usar provocação se ajusta ao perfil de Os Satyros?

Cabral – Eu gosto, acho legal. A gente foi viver na Europa uma época. Lá, a gente fez coisas louquíssimas, como, por exemplo, chegar ao Festival de Edimburgo e a Associação dos Costumes e da Moral da Escócia tentar impedir Sades ou Noites com os Professores Imorais (adaptação de textos do Marquês de Sade), em 1989. Também fomos a primeira companhia ocidental a chegar na Ucrânia, quando caiu o muro. A gente chegou mijando, de pau duro em cena. Eles ficavam o tempo inteiro dizendo coisas como: “Nós nunca vimos isso, a gente nunca imaginou isso”. Era uma relação muito forte com a liberdade, que eles não tiveram durante muito tempo. Para eles, encontrar a liberdade, mais do que a revolução política ou ideológica, também passava pelo sexo.

PPQO- Você concorda que o sexo é libertário?

Cabral – É, acho que é. Isso que está acontecendo no Brasil é a prova viva disso, toda essa questão dos evangélicos, como eles estão se constituindo é assustador. Você vai ver que o sexo é uma forma que eu tenho de lhe prender a uma ideologia, a um caminho, e que daí eu coloco a religião e Deus. Digo que Ele vai lhe salvar, mas tiro o prazer, porque é libertário.

PPQO – Na terceira parte do projeto Satyros’ Satyricon, montada por vocês em 2012, os atores continuavam nus numa festa, e a plateia cercada por eles, vestida. Percebi que a nudez tratada ali era anti-erótica, e até constrangia alguns espectadores. Como vê essa questão da nudez no teatro?

Cabral – Talvez lhe assuste um pouco, mas não gosto do erótico e, sim, do pornográfico. Acho que no erótico você consegue ficar excitado. No pornográfico, não. É quando posso fazer um jogo com você.

PPQO – Qual a diferença do erótico para o pornográfico?

Cabral – O erótico provoca, sugere, indica. O pornográfico mostra. É aquilo. Eu poderia, por exemplo, receber aquele público todo com as meninas usando um pequenino véu, um pano, tapando o sexo um pouquinho, deixando um pelinho aparecer. Isso é provocação, sugestão, aguça. E isso é engraçadíssimo porque no mundo árabe, por exemplo, o cabelo é erótico. Como no Brasil Colonial, quando a canela era erótica.

PPQO – O que é erótico hoje?

Cabral – O Brasil é hipócrita. Uma menina pode ficar inteiramente nua no sambódromo se estiver pintada, por exemplo. Em vez de tecido para cobrir, ela usa tinta. Isso é erótico. Eu gosto dos pornográficos, porque quando não há mais nada depois, eles assumem. E o pornográfico é o lugar onde você consegue se surpreender de verdade. No erótico não.

Isso é bacana para falar do Satyros 2 (a segunda casa de espetáculos do grupo). Tudo aquilo era muito proposital, aquele buraco, não reformar aquilo, o mau cheiro, aquele lugar onde o público se sente incomodado. Isso tudo é político. Por várias razões. Começando no meio teatral, conforme eu construo a minha posição nesse mundo. Desde os incentivos que eu nunca vou receber por conta disso, jamais nenhum dinheiro de nenhuma empresa vai entrar nesses lugares, até tudo o que posso dizer com o meu corpo.

PPQO – Vocês vão sair da Praça Roosevelt mesmo?

Cabral – Acho que sim. A especulação imobiliária é um absurdo. Bom, o Studio SP ter saído da rua Augusta é um crime. Então, a gente chegou, suando, em R$ 7.500 o aluguel do Satyros 2. Em maio, o proprietário queria dobrar para R$ 15 mil. Primeiro que não vale, porque ao lado do Satyros 2 tem um lugar para alugar, e eles estão querendo R$ 5 mil. Não conseguem. Ou seja, essa história de que nós temos uma praça revitalizada, incrível, linda e maravilhosa é tudo mentira. Sai o teatro daqui acaba tudo isso, porque a revitalização de um espaço é muito maior. Na verdade, a nossa grande revolução foi uma mesinha na calçada, mais nada.

Se eu fico ali, acendo a luz e a gente fica lá no nosso espaço ninguém vai roubar o nosso carro. Quando apago, tudo acontece. Isso não é novo. Você vê, por exemplo a relação que o europeu tem com a luz, com o verão. Você chega na Europa e nenhum francês senta na rua com a cadeira pra cá. A gente, não, fica na nossa mesinha, todos sentados olhando para a rua. Quer dizer, tem uma questão de alteridade aí também, o outro me interessa.

Fonte: Pau pra Qualquer Obra, agosto de 2013

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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