Viver não basta

Esta semana fez três anos que estreei “Todos os Sonhos do Mundo”, no Festival de Curitiba. Data importante pra mim. Porque, naquele momento, março de 2019, resolvi soltar pra fora tudo o que me angustiava há muitos anos. Não foi fácil; nada fácil, aliás.

Tudo começou, na verdade, dois anos antes.

2017 foram muitos anos em um só. Lancei livros – foram dois –, estreei peça como ator e filme como diretor. Fui um dos criadores de uma importante escola de teatro em Mato Grosso, recebi título de doutor e comendador, e ganhei os prêmios APCA e Aplauso Brasil pela minha trajetória no teatro. Não foi pouca coisa.

Mas 2017 foi também o ano mais triste da minha vida. Foi o ano em que meu irmão Dimi, um dos meus maiores amores, descobriu um câncer no cérebro, no dia 3 de janeiro; e faleceu exatos dez meses depois, em 3 de novembro.

Enquanto ia vivendo estes dois lados completamente antagônicos, 2017 também foi um ano que, depois de muitas conversas com meu psiquiatra, resolvi assumir o meu transtorno depressivo, identificado lá atrás, no final dos anos 1990, quando fui diagnosticado bipolar. Para quem já teve conhecidos ou passou por estas águas turbulentas, vai saber o que isso significa de verdade. Não é fácil jogar as mãos para o céu e se assumir completamente imperfeito. A depressão arremessa isso na cara da gente todo o dia. Porque quando ela chega, bloqueia tudo, destrói a capacidade de a gente dar e receber afetos. A depressão é a solidão dentro da gente.

A peça foi sendo construída em processo e começou nela a minha despedida do Dimi. Em gotas homeopáticas, em apresentações que aconteciam, neste primeiro momento, apenas em cidades do interior de São Paulo. Foram muitas. Vivendo aquele turbilhão todo, ia pensando. Como uma única vida pode suportar tanta alegria e, na mesma proporção, tanta dor? Como pode uma mesma vida ser tão cheia de outras vidas, tão distantes e, ao mesmo tempo, tão particulares? Eu sabia que precisava transformar aquele momento em abstração.

O formato definitivo do espetáculo seria definido no Festival de Curitiba, em 2019. E foi mágico porque, a partir daí, a peça viajou por várias cidades brasileiras, além de ter sido apresentada em Portugal e em Cabo Verde. Mas talvez a maior experiência deste exercício e da minha vida foi ter, na impossibilidade de atuar em território físico, levado o trabalho ao Instagram e ter sido a primeira experiência cênica a entrar em temporada em modo digital, de março a dezembro de 2020 quando a pandemia nos pegou de calças curtas.

Nossa, foram centenas de apresentações do espetáculo. Contei até a 229ª sessão, depois perdi a conta. E em cada uma, histórias incríveis. Desde espectadores que abriram seus corações, até sessão que terminou com a polícia na porta do teatro. Sim, uma mulher, durante a apresentação do espetáculo, acabou revelando que sofria uma série de abusos e violências dentro de sua casa e que, depois que terminasse a peça, não saberia o que fazer porque acabara revelando, publicamente, coisas que nunca falara para ninguém. Cidade pequena do interior, a polícia foi acionada porque, a partir dali, a história daquela senhora se transformara em um problema de justiça.

Vivi de tudo, coisas mesmo inacreditáveis e me surpreendi a cada sessão. Me lembro de uma apresentação no Teatro Martins Penna, na zona Leste da cidade. Uma espectadora começou a chorar já no início da exibição e não parou mais. Ela estava na segunda fila, na última cadeira do lado direito da plateia, a partir da minha perspectiva. Na mesma fileira, na penúltima cadeira do lado oposto, outra mulher chorava copiosamente. Não é incomum as pessoas chorarem durante as apresentações desta peça. Aliás, tem sido bastante comum. Estou em cena pra discutir e falar sobre a depressão, a partir de depoimentos pessoais e acompanhado de Cecilia Meireles, Carlos Drummond de Andrade, Mario Quintana e até de Olavo Bilac. Converso com os espectadores e tento colocá-los no meio do debate. Mas, naquela apresentação, o que aconteceu foi uma verdadeira catarse. Aqueles soluços rasgados – e muito sagrados, é bom dizer – fizeram uma belíssima e dolorosa trilha para aquela apresentação.

Não parei de me surpreender com as apresentações, onde a plateia sempre fazia parte essencial do trabalho. Nossa, quantas histórias! Como por exemplo as que vivi na cidade da Praia, em Cabo Verde. Ao perguntar o que faríamos se nos restasse apenas um dia de vida, ouvi de uma espectadora:

— Eu iria até a Espanha, procuraria minha mãe e pediria perdão a ela. Vou precisar desse perdão para morrer com alguma paz.

Ou, ao final da peça, outra espectadora me procura para um abraço.

— Entendi muitas coisas hoje.

Respondo que fico feliz com sua consideração. Ela quer tirar uma foto comigo e, enquanto fazemos a selfie, fala como um autômato:

— O vestido, tão lindo, continua guardado no meu roupeiro. Não tenho coragem nem tirá-lo do saco. Nunca foi usado, nunca. E era tudo o que sonhei a minha vida inteirinha. Não foi nesta vida, não foi.

Neste momento ela chora. Eu estou sem palavras. A partir de agora, fala com alguma dificuldade, sua voz está embargada.

— Ele morreu na semana do casamento, faltando cinco dias pro casamento.

Eu a abraço, não sei o que dizer.

— Um tumor, igual ao do seu irmão. Na cabeça. Não resistiu, morreu na mesa de cirurgia.

Foi comum também eu ser procurado por pessoas que eu não conhecia. Como, por exemplo, ao final de uma sessão no Espaço dos Satyros, quando duas mulheres me abordaram. A primeira, de Curitiba, disse acompanhar o meu trabalho há muitos anos. Veio com o livro da peça e queria uma dedicatória. Conversamos rapidamente. Ela me disse que estava morando há um ano em São Paulo, que veio pra cá por causa do marido que havia sido transferido pela empresa em que trabalhava. O moço veio primeiro, um ano antes dela. Quando ela chegou, descobriu que ele tinha outra família aqui, com um filho de cerca de um ano. E se punia por isso. Disse que perdeu, porque o sonho do ex-marido era ter uma família numerosa e que ela era estéril. Culpava-se por isso e chorou muito.

— Talvez seja o momento de entender definitivamente que eu vim pra esse mundão de Deus para ficar sozinha, confidenciou-me.

Mas, talvez, o maior aprendizado foi descobrir com essa peça que faço teatro para me manter vivo. Porque é preciso morrer muitas vezes. É necessário um mergulho sem reservas nos nossos medos, solidões, angústias, desesperos. E isso o teatro vem me ensinado diariamente. Não fosse ele, já teria desistido de tudo. Penso nisso diariamente, também. Porque descobri, desde cedo, que viver não basta.

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