A Cia. de Teatro Os Satyros foi a primeira e ainda é a única do Brasil que mantém um espetáculo em cartaz de forma online nesta quarentena por conta da pandemia do novo coronavírus. O solo Todos os Solos do Mundo é apresentado em tempo real pelo ator Ivam Cabral em parceria com o diretor Rodolfo García Vázquez, em temporada de sexta a domingo, às 21h, que completa um mês nesta terça, 21 de abril. O espetáculo é apresentado pela ferramenta da live no Instagram @ivam_cabral, onde já foi visto por quase 4 mil pessoas em seu primeiro mês.
A iniciativa é pioneira não só no Brasil como no mundo. “Eu continuo fazendo a peça para evitar a invisibilidade, porque nós do teatro somos muito invisíveis socialmente. Então, essa minha insistência em seguir com a peça tem a ver com isso, sabe, Miguel, tentar vencer essa invencibilidade neste momento tão delicado”, diz Ivam Cabral em entrevista exclusiva ao Blog do Arcanjo. “As primeiras apresentações foram feitas do meu apartamento na rua Augusta, no centro de São Paulo. Desde o dia 10 de abril, tenho atuado diretamente da minha casa, em Parelheiros, na zona sul da capital paulista”, fala. O artista paranaense de Ribeirão Claro radicado em São Paulo lembra que apenas uma apresentação precisou ser cancelada, a do dia 9 de abril, por ter ficado sem acesso à internet.
Com encenação simples e delicada e texto inspirado em fatos da própria vida de Ivam Cabral e na forma como ele lida com a bipolaridade e a depressão, Todos os Sonhos do Mundo estreou aplaudida de pé em 2019 no charmoso Teatro Paiol, no Festival de Teatro de Curitiba, maior evento das artes cênicas na América Latina.
Depois, a obra cumpriu temporada no ano passado e neste ano no Espaço dos Satyros Um, na praça Roosevelt, cuja revitalização foi impulsionada pelo teatro do grupo. E a peça começava a fazer sua turnê nacional e internacional quando eclodiu a pandemia do novo coronavírus no mundo.
Apesar de reforçar a importância das lives neste período de distanciamento social, Ivam Cabral lembra que faz algo que vai além disso. Ele lembra que segue em cartaz com uma peça de teatro, arte que foi uma das primeiras a ser afetada pela crise atual.
“Estava viajando com a peça quando a pandemia nos pegou. Tinha feito a peça em Cuiabá no dia 7 de março e estava em Foz do Iguaçu, onde iria me apresentar no dia 13 de março, coisa que não consegui fazer, porque a pandemia começou justamente neste momento e a sessão foi cancelada. No dia 14, retornei a São Paulo sem ter feito essa apresentação”, recorda.
Se o novo coronavírus não tivesse parado as nossas vidas, Ivam estaria em cartaz não em sua casa, mas na praça Roosevelt. “Neste momento estaria em cena no Satyros e a temporada terminaria na Europa. Já estava tudo acertado que faria Portugal e Espanha, e estava conversando com a Finlândia, para fazer a peça lá na Suécia”, revela. “Era uma dádiva dos deuses essa temporada internacional, para uma peça como essa, fazer todas essas apresentações pelo mundo. E, de repente, tivemos de interromper tudo para entrar em quarentena”, diz.
Por isso, manter-se em cena, mesmo que virtualmente, faz parte da forma como Ivam encara a vida. “Eu quero imaginar que estou em cartaz como eu estaria se essa pandemia não tivesse pegado a gente no meio do caminho. Vamos completar neste 21 de abril um mês em cartaz. E as minhas apresentações não acabam com o fim da sessão na live. Depois, muitas pessoas vêm falar comigo, contam que estão sozinhas, sofrem de depressão e que a peça as ajudou muito”, revela. “As pessoas se abrem e se sentem íntimas para falar sobre os problemas delas para mim”, conta o artista.
A iniciativa de Ivam Cabral e do Satyros de uma certa maneira aponta possíveis caminhos para a classe artística e as artes cênicas não serem extintas pelo coronavírus — Ivam e seu grupo ainda coordenam a campanha #TeatroEAfeto, com ações solidárias que arrecadam cesta básica a artistas vulneráveis do teatro em parceria com a SP Escola de Teatro, da qual é diretor executivo, e o Sated-SP.
“Tive três espectadores que quiseram pagar pela sessão. Uma delas pagou 250 reais e transferiu para minha conta. Outra pagou 100 reais e outra 50 reais”, relata. “No começo, eu disse que não precisava, mas depois percebi que seria legal receber, porque é o meu trabalho, é uma forma simbólica de tentar entender esse novo tempo que está surgindo”, pontua.
Ivam conta que sua atitude em continuar em cartaz tem a ver com o modo que encara a vida. “Foi algo absolutamente natural, porque estava em cartaz e me recusei a parar”, fala.
“Ao ver as notícias do coronavírus chegarem ao Brasil, eu já comecei a imaginar o que aconteceria. Estava hospedando o artista português Rui Miguel Germano antes da pandemia começar e fui acompanhando por ele tudo o que acontecia na Europa, que estava um mês à nossa frente. Então, quando entramos em quarentena, eu já sabia que a gente enfrentaria esse horror. Então, meu jeito de continuar vivo foi manter a peça em cartaz na internet”, explica.
Ivam diz que não se sente especial por seguir fazendo teatro neste momento. “Não é um trunfo ser o único artista do teatro no Brasil e talvez do mundo estar fazendo um espetáculo em cartaz na internet, eu acho triste na verdade. Porque entendo as dificuldades que os artistas e grupos de teatro têm para se manterem vivos num momento como esse. Se pegar o próprio Satyros por exemplo, que costuma ter peças com muitas pessoas, seria impossível fazer neste momento uma peça assim”, avalia.
“Foi uma coincidência justo neste momento eu estar com um solo, que eu poderia fazer em qualquer lugar, que cabia em novos formatos. Eu já fazia essa peça em lugares e palcos muito diferentes, já fiz em sala de aula mais de uma vez, por exemplo. Sabe, Miguel, o que me orgulha nisso tudo é ter a possibilidade de poder ser uma luz, uma chama, para indicar para os que virão como a gente pode se reinventar. Então, ser essa chama, ser esse espelho talvez me encha de orgulho, sim, e, refletindo agora, talvez seja essa a minha função, de continuar aqui propondo coisas para o futuro e deixar o teatro visível neste momento tão crucial em que, mais do que nunca, precisamos ser vistos para sobreviver”, conclui Ivam Cabral.
Fonte: Blog do Arcanjo