CRÔNICA | Uma Revolução pela Ternura

Hoje, rolando o Instagram, apareceu um vídeo do Ney Matogrosso — com seus olhos de abismo e voz de lâmina. Ele dizia ter vencido a maior batalha da vida ao beijar o próprio pai. E completava, sem vergonha da ternura: “Fui o filho que mais beijou o meu pai.”

Fiquei ali, suspenso, como quem escuta uma música que ainda não sabe se gosta, mas já sente que dói. E pensei: isso também aconteceu comigo.

Durante muito tempo, meu pai foi um território inabitável. Não por ausência, mas por presença áspera — dessas que moldam a infância com frases como: “Firma esse corpo, menino.” Palavras que, mais que duras, carregavam o peso do mundo — o mundo dele, talvez, ou de tantos outros homens que aprenderam que amar é calar.

Na adolescência, as frases se tornaram mais cortantes, atravessadas por um machismo automático, uma homofobia cotidiana, um medo travestido de autoridade. E eu, como tantos meninos sensíveis em famílias duras, aprendi a sobreviver em silêncio.

Foi só no teatro — que sempre me pareceu uma espécie de ventre do mundo — que algo se rasgou em mim. Era Senhora dos Afogados, era Nelson Rodrigues, era o terceiro ano da faculdade e, sobretudo, era Lilian Fleury. Ela, diretora e futura psicanalista, nos disse num ensaio: “Todos nós, em algum momento da vida, desejamos ardorosamente nossos pais.”

As palavras dela me explodiram por dentro. Não como escândalo, mas como revelação. Foi então que procurei a análise. Pela primeira vez, alguém me autorizava a sentir o que eu sentia.

Naquela época, todos os meus colegas de elenco tinham pais jovens, de quarenta e poucos anos. O meu já tinha passado dos sessenta. E todos beijavam seus pais. Aquilo me atravessava. Me queimava de um desejo mudo. Então eu decidi: vou beijar o meu pai.

Morava em Curitiba e comecei a voltar para minha cidade, no interior, sempre que podia. Final de semana sim, final de semana talvez. Um único objetivo: na despedida, dar um beijo no meu pai. Mas o gesto era maior que a coragem. E, muitas vezes, voltei só com o desejo na mala.

Até que aconteceu.

Foi na Praça Santos Andrade, fim de tarde. Meu pai tinha vindo nos visitar e estava com minha irmã Irani. Na hora da despedida, antes de seguir para a faculdade, tomei impulso e tasquei-lhe um beijo. Um beijo curto, tenso, inaugural. Saí correndo como quem acaba de cometer um crime ou fundar um país.

A partir dali, nunca mais paramos de nos beijar. E os meus irmãos também começaram. E o meu pai se tornou — quem diria? — o maior beijoqueiro do mundo.

Às vezes, um beijo é mais que afeto. Pode ser insurreição. Pode ser reconciliação. Um rito. Pode ser aquilo que rompe gerações de silêncio. Pode ser a palavra que o corpo diz quando já não pode mais calar.

Talvez seja isso que Ney quis dizer. Talvez seja isso que a vida me ensinou. Que vencer uma batalha nem sempre é empunhar uma espada — às vezes, é simplesmente oferecer a face.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1869

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