UM MUNDO QUE SE RECONSTRÓI NUMA QUARTA-FEIRA DE CINZAS

Quarta-feira de cinzas, primeiro dia da quaresma, onde em casa, na minha infância, era o único dia do ano que era terminantemente proibido ligar o rádio.

Daí você não tem nada pra fazer, está passeando pela vida, entra na Livraria Cultura, anda de um lado pro outro e… de repente, ele está ali, à sua frente, inteirinho pra você.

Você leva um susto, não esperava encontrá-lo. Afinal, ele é bissexto, aparece só de vez em quando e quando quer. É seletivo demais, não se mistura muito. É recatado e, embora não o conheça pessoalmente, me parece tímido também.

Mas, enfim, é quarta-feira de cinzas – e, juro, não existiria dia mais bonito para isso acontecer –, a cidade está meio parada. Embriagada. Há alguma melancolia no ar e as pessoas têm um jeito diferente no caminhar e no olhar.

Estou vindo de uma reunião importante de trabalho, realizada improvisadamente, num café no Center 3. Como tenho folga e a tarde toda pela frente, caminho meio sem rumo e, juro, não esperava me surpreender com nada.

Mas, antes de tê-lo alcançado, vou à estante de poesia. Verdade, nos últimos tempos tenho me impressionado com poesia. E, afinal, pra quem tinha entrado ali por entrar, ainda encontro “Bertold Brecht – Poemas 1913 – 1956”, da Editora 34, que há tempos eu perseguia. Com medo de perdê-lo, agarro o livro, exemplar único ali.

Me deparo com o Zé Alessandro, meu colega de trabalho em “Cabaret Stravaganza”, também folheando algum livro de poemas. Zé, embora tenha me dito que estava um pouco indisposto – me segreda que acabara de doar sangue – está luminoso. Com incríveis olhos verdes, veste uma camisa polo verde e branca que destaca ainda mais o verdejante de seu olhar. Nos abraçamos e depois de um tempo continuo minha perambulação pela livraria.

Vagueio, manuseio um livro e outro, subo a rampa que liga o térreo ao primeiro andar. É então que, ao chegar na seção de discos, o encontro. Na enorme estante, mesclada de CDs e DVDs, ele está ali, multiplicado em vários exemplares.

É pardo mas tem espessura. Claro que, ao me aproximar, não sei muito bem do que se trata. Mas ele, irreconhecível como só, tem estilo. Percebo que a embalagem parda embala uma outra, entre o azul celeste e o marinho claro. É quando eu o apanho. Meu coração acelera.

Assim, numa quarta-feira de cinzas, primeiro dia da quaresma – onde em casa, na minha infância, era o único dia do ano que era terminantemente proibido ligar o rádio –; dia sagrado para nós, que temos o dever da reflexão e da conversão; dia de pensar em mudanças e de avaliar a efêmera fragilidade da vida; dia onde não se pode lavar a testa; dia de se arrepender de tudo; dia de se sentir culpado pela própria existência, eu leio, em letras discretas: “Zé Miguel Winisnik – Indivisível”.

Na quarta-feira de cinzas, meu mundo se reconstrói. E tudo começa, mais uma vez, a fazer sentido.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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