Tristeza nunca mais

Aconteceu uns anos atrás, quando estreamos “O Anjo do Pavilhão Cinco”. Após a apresentação, houve uma pequena recepção para os convidados. Uma noite especial, com pessoas especiais. Estavam lá, Aimar Labaki, Dráuzio Varela, Regina Braga, Paulinho Vilhena, Jorge Takla; além do Emílio Di Biasi, nosso diretor, o elenco da peça e o pessoal dos Satyros.

Tinha sido uma estreia concorrida e estávamos felizes. Lá pelas duas e meia da manhã, porém, eu vejo, sentado num canto, o Marcelo, nosso técnico de som. Ele está visivelmente deslocado. Vou conversar com ele e descubro que o garoto perdera o último metrô e que dormiria no teatro. Estou de saída e resolvo convidá-lo pra dormir em casa.

Na manhã seguinte, acordo muito tarde, perto do meio-dia. O Marcelo está na sala e eu o convido para comer alguma coisa. Enquanto organizo a mesa e preparo o café, ele desce para comprar pão e leite.

Em minutos, temos uma grande mesa e estamos felizes. Começamos a conversar. Apesar de trabalharmos juntos há algum tempo, pouco sei de sua vida, além de ser morador do Jardim Pantanal, na zona Leste.

Descubro que ele tem 19 anos, que vive com a mãe e com mais três irmãos, e que o pai está na prisão. É o único de sua casa que está trabalhando e que sua namorada se suicidou há pouco menos de um mês.

A conversa começa a ficar tensa e silenciosa. Tem muita tristeza ali.

— Eu venho do inferno, Ivam.

Começo a querer entender mais do universo dele.

— Meus amigos de infância ou estão presos ou morreram.

Estou emocionado. Como é viver nesse inferno? Que mundo é esse, afinal, tão próximo e distante ao mesmo tempo? De repente o olhos do Marcelo se enchem de lágrimas.

— Já matei também.

Eu me arrepio. Há vários conteúdos de emoção ali. Ele me conta que, aos 13 anos, em uma briga de meninos armados e mal amados, descarregara uma arma no peito de um desafeto.

— Mas renasci aqui, Ivam. Os Satyros mudaram a minha vida.

Não me lembro exatamente como terminou esta conversa. Mas serviu para que ficássemos muito próximos. O tempo passa e um dia eu o encontro chorando. Me revela que sua mãe está gravemente doente e precisando de uma vaga num hospital público para uma operação de vesícula. Doía olhar nos olhos do Marcelo. Havia muita dor ali.

Foi um telefonema meu ao Dráuzio Varela que resolveu o problema da mãe do Marcelo.

Hoje, indo pra SP Escola de Teatro, na Praça Roosevelt, encontro o Marcelo que já não trabalha mais no Satyros e que, feliz, vinha nos fazer uma visita. Me conta que sua mãe está trabalhando e que ele agora atua como representante comercial de uma marca de bolachas.

Lindo mesmo foi ver o Marcelo entrar em seu Uno Mille e sair dali com o som do carro em alto volume. A voz de Marcelo Camelo ecoou:

Tristeza nunca mais
Vale o meu pranto que esse canto em solidão
Nessa espera o mundo gira em linhas tortas

Alegre com o que via, fiquei pensando nas angústias e nas alegrias da gente. E também na complexidade disso tudo. Mas com uma certeza: pelo menos aquela tristeza do Marcelo, nunca mais.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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