TRAGÉDIA | A vida em três minutos

Entre idas e vindas, vivi sete anos em Lisboa. Foi um tempo decisivo. Fiz 30 anos ali. E talvez seja essa a idade em que a vida nos exige uma primeira síntese, um balanço que ainda não sabemos fazer. Quando deixei o Brasil, Cassia Eller dava os primeiros passos de sua carreira; quando regressei, alguns anos depois, ela já era febre nacional, todos cantavam suas canções e eu me sentia estrangeiro dentro da própria língua. Não sabia quem era aquela moça. Se, por um lado, perdi muito por aqui, ganhei tanto acolá.

Vi nascer o “Pronúncia do Norte”, dos GNR. Vi o Madredeus despontar para o mundo. Vi Sara Tavares ganhar o Festival da Canção. Testemunhei o lançamento de “Evita, com Madonna, no Cine São Jorge, na Avenida da Liberdade. A cantora-atriz estava na mesma fileira que eu, a poucas poltronas de distância, e parecia inacreditável que a ficção e a realidade se cruzassem daquela forma banal, quase doméstica.

Morava na Baixa, mas vivia no Bairro Alto. Para subir e descer, meu corpo se habituou ao Elevador da Glória. Não era um brinquedo turístico. Antes, era vida prática. Um bondinho teimoso, desde 1885, ligando dois mundos separados por menos de 300 metros de íngreme distância. Três minutos era o tempo da viagem. Três minutos. Só isso. E foi isso que me intrigou agora. Como três minutos podem mudar um destino?

Ontem soube que o bondinho descarrilhou: dezessete mortos, vinte e um feridos, sete em estado grave. No início, recusei acreditar. Sempre vi aquele bondinho como um refúgio, uma promessa de segurança. Quase uma imagem inconsciente de paz no mundo. Mas a notícia me atravessou como lâmina. Pensei de imediato: poderia ter sido eu. Bastava estar lá, dependente daqueles três minutos. Bastava perder o bonde, ceder o lugar a alguém mais velho, enfrentar uma fila mais demorada. Toda a vida suspensa no acaso de três minutos. Pensamentos que parecem tolos, quase infantis, mas que agora crescem e me esmagam.

Portugal não é passado para mim. Volto ao menos uma vez por ano. Tenho amigos-irmãos que respiram Lisboa todos os dias. Então não é apenas sobre mim. Poderia ser com eles. A vida deles, suspensa nesses três minutos.

Fico pensando, cá com meus botões… Neste caso, a vida, afinal, cabe no tempo exato de uma travessia curta. Três minutos entre a Baixa e o Bairro Alto. O bastante para que tudo se mantenha em pé. Ou desabe.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1928

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo