Autêntico, disruptivo e social
– Todos os Os Sonhos do Mundo
Por Marcio Tito
Me sentei diante de um microfone que interrompia as trevas do palco e, como de costume, fui esquecendo o tempo da rua e acessando a dimensão da cena. Por razão que desconheço, impossível de acessar pela razão, de pronto me veio a imagem de uma pluma que flutuasse e se encaminhasse até o oitavo andar da São Paulo Escola de Teatro. Bobagem minha, é claro, então sigamos na observação do claro-escuro que aguardava calmamente a figura do protagonista, Ivam Cabral…
Como um cicerone, e dissimulando assim a estranha configuração do que estava por vir, o artista irrompe na cena. E tudo parece estar fora de um teatro (embora estejamos precisamente em um teatro com urdimentos e demais configurações cênicas).
“Boa noite”, “que noite linda”, e, durante as apresentações quase triviais, como se tivéssemos perdido alguma fala, o horizonte do intérprete desperta em nosso corações uma dimensão chuvosa e melancólica. Começou.
Os olhos perdem o brilho inicial.
A gravata borboleta deixa de anunciar uma possível festa e a luz da cena se transmuta em um tempo-espaço pensado para o inusitado de uma confissão sem culpa, sem Deus e sem perdão.
Em uma performance bem orquestrada e engendrada entre a representação e o encontro informal, mas ainda assim entregando os sabores de uma peça teatral, Ivam Cabral magnetiza as atenções e vibra na cena os estertores de uma cosmogonia tão particular quanto coletiva.
Curiosamente, com elenco enxuto e vocabulário maneirado, com interpretação contida e figurino tradicional, neste instante algo em nosso repertório precisa dizer – “É Satyros”.
Nos vemos no centro veloz e visceral de um espírito que tem urgência em nos dizer que a calmaria dos dias é, em uma análise, uma desespero para a alma. E nos dizer que as palavras e os olhares são testemunhas barulhentas demais. E nos dizer que as histórias e as memórias são as dimensões fantasmagóricas de um mundo em acelerada e perigosa e constante resignificação.
Ivam, em seu Stand Up Tragedy rasga um véu que não costuma se fazer evidente nem na vida e nem no palco. E o que termina por acontecer em Todos os Sonhos do Mundo é uma esgotamento da linguagem.
Não é uma peça triste, bucólica ou melancólica. Não fala sobre superação ou força ou retomada. É, para além da resistência ou da existência, um ato contínuo, comunitário e racional.
Todos os Sonhos do mundo é uma peça sobre:
– E a pluma que flutuou da minha imaginação ao palco, e eu não sabia disso até então, partia do cinema e do lugar de onde se conta histórias. Talvez por ser uma peça que anuncia querer cercar a verdade, e embora eu não soubesse disso ainda, as forças da arte e da lembrança quiseram me trazer a mais famosa das pluma…
Aquela que abre o filme protagonizado por Tom Hanks…
Porém, no contexto da atual encenação, ao contrário de duvidarmos da legitimidade dos fatos ou do nível de consciência do intérprete, jogamos o jogo contrário. Percebemos que diante de nós qualquer coisa se ergue. Essa coisa é verdadeira e enorme. Existe, entre o artista e a plateia, um vácuo sagrado. Todos Os Sonhos do Mundo conjura o não lugar de um vocabulário da alma. É, para todos os efeitos, e com muita resiliência, uma contação de histórias.
Fonte: deusateucombr.wordpress.com