GEOPOLÍTICA | O mapa não é o mundo

Olhe com calma. O traço no alto do mapa mede 6.400 km. O traço mais abaixo, 7.200 km. Mas o que os olhos veem, e o que o mapa insiste em nos ensinar, é que o Norte é maior, mais vasto, mais imponente. A África, esticada no Equador, encolhe-se diante da Rússia. A imagem não mente, mas tampouco conta a verdade.

Estamos diante de uma projeção, a de Mercator, criada no século XVI para facilitar a navegação europeia. Um mapa prático para quem saía dos portos da Flandres ou de Lisboa e queria chegar às Índias ou ao Brasil. Mas a praticidade tem seu preço: distorce. Faz parecer gigantes os que estão no topo e mínimos os que vivem nas bordas da representação.

Trata-se, portanto, de uma iconografia do poder. Um mundo moldado não pelo que ele é, mas pelo que convém a quem o desenha. A Geografia vira política. O Norte cresce à custa do Sul, que encolhe sem protestar. O que deveria ser representação vira imposição. E, como ensinou Lacan, “o real nunca se deixa capturar por completo no simbólico”. Assim, o que resta fora do mapa continua a pulsar, ainda que invisível.

O problema não está no mapa, mas na forma como ele se instala na nossa imaginação. Desde crianças aprendemos a olhar o mundo assim: com a Europa no centro, os Estados Unidos em destaque, e os continentes africano e sul-americano espremidos no rodapé do globo. Crescemos medindo potência por milhas náuticas e relevância por centímetros no papel.

Haveria outras maneiras de desenhar o mundo. Poderíamos partir do Sul. Poderíamos inverter, girar, multiplicar projeções. Mas o poder, como a cartografia, prefere permanecer no lugar onde já aprendeu a parecer inevitável. O que é mostrado como natural quase sempre é uma construção histórica bem-sucedida.

O mapa, afinal, é apenas uma tentativa de domesticar o infinito. E como toda domesticação, exige sacrifícios. Apaga as margens, distorce os corpos, transforma presenças em ausências. Mas há quem resista. Há quem olhe para esse mapa e veja, não territórios, mas narrativas. E então, com uma linha vermelha e um número em quilômetros, desfaça a farsa. Como quem diz: o mundo é maior do que o mapa permite imaginar.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1853

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