Desde que me deparei com a teoria do psicanalista Jorge Forbes, me tornei seu seguidor quase imediato. Há algo de profundamente contemporâneo na maneira como ele lê o mundo. Não como uma sucessão de fatos, mas como um campo vibrátil de forças, afetos e invenções. Sua teoria de Terra Dois, antes de ser uma proposta conceitual, é uma ética do presente. Um convite para habitar o agora com responsabilidade, risco e imaginação. É também um farol que ilumina meu pensar pedagógico na SP Escola de Teatro. Um lembrete de que formar artistas hoje não é transmitir técnicas, mas abrir espaço para subjetividades que desejam inaugurar mundos.
Terra Dois, como a imagina Forbes, não é um lugar. É um gesto. Um deslocamento quase imperceptível do modo como estamos habituados a caminhar, pensar, nos relacionar. Terra Um é o chão conhecido – às vezes duro, às vezes confortável –, onde crescemos acreditando que o mundo se organiza como um prédio: andares nítidos, paredes sólidas, um chefe no topo e um destino previsível no horizonte. Terra Dois, ao contrário, é o instante em que descobrimos que o prédio sempre foi móvel, que as paredes eram apenas acordos, e que o horizonte pode nascer inesperadamente atrás de nós.
Vivemos a travessia.
Na superfície das palavras, parece uma troca simples. Sair da ordem vertical e experimentar a horizontal. Substituir a verdade por certezas temporárias. Trocar o consenso pelas radicais diferenças. Mas, por dentro, essa mudança é sísmica. É como se o mundo deixasse de pedir que a gente raciocine para, enfim, permitir que a gente ressoe. Terra Dois não é menos exigente. É mais. Porque abandona a segurança das respostas prontas e nos convida ao risco de inventar as perguntas.
Em Terra Um, o líder diz de cima, orienta, classifica, avalia. Em Terra Dois, ele se posiciona em círculo, na horizontalidade, escuta o murmúrio do coletivo, assume responsabilidades e desperta estilos. O líder moderno controla. O pós-moderno inspira. O primeiro, entrega status; o segundo, sentido. O de ontem se apoia na razão asséptica. O de hoje arrisca a pele na razão sensível. Aquela que sabe que o mundo não se governa apenas com lógica, mas com desejo, intuição, vibração.
Terra Dois é o lugar em que a interdisciplinaridade – ainda tão preocupada com fronteiras – dá lugar à indisciplinaridade, essa força que aceita que tudo pode se misturar se houver verdade no encontro. É onde a eficiência do igual perde espaço para a criação da diferença. Onde não basta informar. É preciso comunicar, tocar, ferir de leve, deslocar. Onde moralidade vira peso morto e ética se torna bússola viva.
E talvez o ponto mais delicado dessa travessia seja este. Em Terra Um, o futuro é a extensão linear do presente; em Terra Dois, o presente é quem inventa o futuro. Isso exige uma coragem de artista – não de quem sabe, mas de quem cria. É trocar o lucro como fim pelo lucro como meio de construir mundos. É converter o poder em cidadania. É deixar de projetar o futuro como quem desenha um mapa e, ao invés disso, assumir a aventura de quem caminha sem trilhas, confiando que o chão se formará sob o passo. Afinal, o meu território é onde os meus pés tocam.
No fundo, Terra Dois é menos sobre tecnologia, pós-modernidade. É sobre humanidade.
É sobre nos tornarmos capazes de monólogos articulados que se escutam mutuamente. De diálogos que não buscam consenso, mas coexistência. De experiências que substituem treinamentos. De oportunidades que emergem das adversidades. De lideranças que se reconhecem editoras da cultura, e não apenas patrocinadoras.
Talvez Terra Dois seja apenas isto: a coragem de deixar o mundo ressoar dentro de nós até que nossa própria voz, ao sair, esteja afinada com a pluralidade do tempo. A coragem de abandonar a promessa de certeza e abraçar, sem medo, a prodigiosa e luminosa ambiguidade de viver.
