Atriz, diretora e roteirista, ela é a primeira mulher trans a se destacar na teledramaturgia brasileira, além de ser referência no teatro contemporâneo
Como se forma um artista? As origens podem ser diversas, mas quase sempre há uma combinação de curiosidade, vocação e um encontro precoce com linguagens capazes criar um caminho em comum. Para alguns, essa trajetória se impõe apesar de inúmeros obstáculos; para outros, acontece de maneira quase orgânica, quando não há quem impeça o sonho de florescer. É nesse cruzamento entre dificuldade e naturalidade que se inscreve a trajetória de Luh Maza — atriz, diretora e roteirista — a primeira mulher trans a ganhar destaque na teledramaturgia brasileira e roteirista-chefe da adaptação de Torto Arado, série encomendada pela HBO Max. Vale destacar que sua equipe contou com a participação de um grupo de mulheres negras, algo inédito no país. Neste ano, Luh celebra 20 anos de carreira no teatro.
No caso de Luh, a vocação se tornou possível porque havia, em sua casa, a convicção de que a arte é fundamental não apenas para a formação individual, mas para o desenvolvimento humano em um sentido mais amplo. Filha de uma professora de Educação Infantil e de um bombeiro, ela cresceu no subúrbio carioca, em um contexto onde a carreira artística poderia soar improvável, como ela própria reconhece.
“Mesmo dentro daquele universo, em que eu vinha de uma família suburbana mais pobre, que não tinha exatamente outros artistas bem-sucedidos, ainda dentro dessa impossibilidade, para mim era muito natural esse sonho, porque tive acesso a essa linguagem, a esse idioma, muito cedo.”, contou a artista em entrevista por telefone à Bravo.

A forma como as artes estavam presentes em sua vida fazia com que ela acreditasse que todas as crianças tinham acesso ao mesmo tipo de formação. E lembra da mãe e da avó a levando para peças de teatro, espetáculos de dança e exposições, muitas vezes em vez das atividades consideradas mais comuns para a infância.
“Não é que houvesse exatamente um estímulo, mas ninguém me desestimulava do sonho da arte. Ninguém diminuía ou menosprezava o meu interesse por cultura. Acho que canalizaram em mim, de uma forma muito bonita, essa compreensão de onde eu tinha potência.”
Depois de tanto contato com as artes cênicas, ela percebeu que precisava vivenciar o ofício na prática, estar, ela mesma, em cima do palco. Foi por volta dos 12 anos que assumiu um pacto com a profissão. “Não dá mais para estar só na plateia. Eu preciso ir para o palco, preciso entender, aprender, pesquisar e descobrir esse lugar que admirei por tanto tempo.”
Começou em um curso de teatro, do qual recebeu uma bolsa parcial, até conhecer a diretora Ana Kfouri, que no início dos anos 2000 ministrava uma formação no Sesc Tijuca. Muito antes de se dedicar à palavra escrita, Luh estudou teatro físico com Ana, e entendeu, mesmo intuitivamente, que o gesto sempre vem acompanhado da palavra — ainda que fora dos padrões convencionais — guiado pela intenção que mobiliza a ação.
Como todo ator, sua dramaturgia foi se escrevendo internamente, e as palavras chegaram ao papel, resultando na primeira publicação: a peça “Boi da Cara Preta”, criada em parceria com Melissa Coelho. A obra também rendeu sua primeira encenação, marcando o início de um percurso que se expandia para outras vertentes, além da atuação.
“Era uma época em que não havia uma grande demanda nem um diálogo intenso com os diretores da cena. Então, tornou-se quase necessário que dirigíssemos nossos próprios textos. E, justamente a partir dessa necessidade, começamos de fato a dirigir. Alguns de nós acabamos nos apaixonando por esse caminho — como eu.”
A necessidade mostrava uma realidade menos romantizada: Luh e seus colegas buscavam oportunidades e estabilidade, enquanto se desdobravam em dois ou mais trabalhos. Políticas de fomento à cultura eram escassas, e a luta cotidiana era por visibilidade e espaço.
Alguns colegas seguiram o audiovisual. Para Luh, ainda levaria tempo até trilhar esse caminho. Tentou, bateu em muitas portas, mas naquele momento nenhuma se abriu. A prioridade continuava sendo o teatro — uma realidade cada vez mais distante no Rio de Janeiro.
“Bom, está difícil aqui no Rio de Janeiro. Preciso ir para onde o teatro esteja sendo valorizado.”, disse antes de se mudar para São Paulo. “Naquele momento, São Paulo estava em ebulição artística. Já existia o fomento ao teatro, algo inimaginável para nós, no Rio de Janeiro. Eu lembro da Praça Roosevelt: foi ali, em 2006, quando vi pela primeira vez, que decidi me mudar para cá. Eu pensei: ‘Meu Deus, é isso, era exatamente isso que eu estava procurando’.”
Na Roosevelt, que já foi um dos polos culturais mais fervorosos da cidade, Luh encontrou não só uma plataforma de visibilidade, mas também amigos que a acompanhariam pela vida. Recebeu apoio de uma das figuras mais importantes da cena contemporânea Roberto Alvim — na época engajado em pautas de esquerda e mobilizado pelo fortalecimento da cultura e dos artistas, antes de se aliar à direita radical.
“Quando decido vir para São Paulo, ele se torna um dos meus grandes incentivadores. É quem me dá trabalho, quem me passa muitas das aulas que ele daria — e foi graças a essas aulas que eu consegui sobreviver durante algum tempo em São Paulo.”
Outra influência crucial foi Ivam Cabral, cofundador da Cia. de Teatro Os Satyros, que abriu as portas da Roosevelt para que Luh integrasse aquele movimento. Uma de suas primeiras apresentações aconteceu na Praça Roosevelt, com um texto de Gabriela Melão, “A história dela”, com quem voltaria a repetir a parceria mais tarde.
Aos poucos, foi vindo o reconhecimento e outras instituições foram acolhendo a dramaturga recém-chegada. Em 2009, ela publicou um de seus textos em uma coletânea organizada por Ivam, intitulada “Coleção Primeiras Obras”. A publicação seria finalista do Prêmio Jabuti na categora Livro de Arte no ano seguinte. “[O livro] Teve grande repercussão. Muitas pessoas conheceram minha dramaturgia — e até hoje a conhecem por meio desse livro. Não apenas em São Paulo ou no Rio de Janeiro, mas em todo o Brasil.”
Entre idas e vindas entre São Paulo e Rio de Janeiro – para qual Luh resolveu dar mais uma chance –, surgiu um convite em 2015 para sair do país e ir para Portugal apresentar o espetáculo “Carne Viva”, obra publicada naquela coletânea em 2009. A experiência incluía dirigir um grupo que apresentaria a peça.
“A partir dessa ida para Portugal, houve uma mudança de perspectiva, como se eu tivesse voltado para o jogo. Se por alguns anos eu tinha me retirado, a estreia em Portugal, num teatro de mil lugares, foi muito importante para que eu fosse vista de uma outra forma. E também para lembrar que eu não era só a crítica, pesquisadora ou professora que tinha ficado mais evidente nos últimos anos, mas também uma criadora.”
Ao retornar para o Brasil, ela chega com mais segurança de seu trabalho e seus propósitos dentro da arte. Talvez para além disso, tenha lhe dado mais perspectiva de vida, já que ela lidava com uma depressão severa. Na sua trajetória, ela encenou 14 peças, entre elas Boi da Cara Preta (2004), Três T3mpos (2005), Kiwi (2016) e Transtopia (2019), além de revisitar Carne Viva em Portugal e no Brasi.
“Acho que, pela primeira vez, chegando aos 30, eu entendi que precisava olhar para mim. Além de olhar para o mundo, percebi que, tendo conquistado o reconhecimento que eu tinha buscado tanto. Foi o momento de me colocar enquanto uma mulher trans, de reivindicar o reconhecimento público como mulher depois de toda essa jornada.”
Naquele período, ela buscou compreendeu melhor sua identidade e fez com que buscasse se apresentar de outra maneira para si e para os outros. Como boa capricorniana, era a primeira vez que ela não colocava o trabalho na frente de todo o resto. Se apresentar como mulher trans seria desafiador, especialmente diante do medo da reação das pessoas próximas, e também do meio artístico.
“E isso foi difícil, porque eu me escondia muito. Tudo o que eu mais fazia era me esconder. Enquanto mulher, naquele momento eu precisei reivindicar. Eu gosto muito dessa palavra: reivindicar. Porque, para mim, não se trata de uma transição, no sentido de virar algo que não se era. A gente já é. O que acontece é que passamos a exigir ser reconhecidas da forma que somos. Essa reivindicação, em 2018, na minha cabeça, vinha acompanhada do medo e do preconceito. Eu realmente pensei: ‘Agora acabou, não vou ter mais carreira nenhuma’. Já era difícil antes, e eu dizia: ‘Nossa, não vai dar’.”
De fato, algumas pessoas se afastaram. Mas talvez fosse inevitável que partissem de qualquer maneira. O efeito, no geral, não foi aquele que Luh temia. Muitas outras chegaram, e diversas oportunidades começaram a brotar em seu caminho. Surgiu, então, um novo convite dos Satyros, em um projeto que abordava justamente a transgeneridade.
“E lá estava eu, com um grupo de oito artistas trans. Com exceção de um que já tinha bastante experiência no teatro, todos os outros estavam começando na arte. E eu ali, numa sala de ensaio, fazendo exercícios… caramba, foi como voltar no tempo. A gente fala muito sobre a questão trans como uma nova puberdade, uma nova infância, um novo endurecimento, uma nova adultez enquanto mulher. No meu caso, isso aconteceu dentro do teatro.”
Em seguida, veio o primeiro convite para a televisão: colaborar com o roteiro da série Sessão de Terapia. Inicialmente, Luh cuidaria do desenvolvimento de um personagem trans na trama. Mas o papel foi cancelado, e ela passou a trabalhar em outra história. Nesse momento, Jacqueline Vargas (roteirista-chefe da série), que já conhecia sua dramaturgia e tinha lido todos os seus textos, disse: “Não, ela pode escrever sobre qualquer outro personagem, não precisa se limitar ao que está na frente”. Graças à defesa de Jacqueline, Luh permaneceu na equipe e passou a desenvolver outro personagem, que também carregava questões identitárias — algo com que ela estava profundamente envolvida. Era um homem negro cis.
A obra não apenas colocou seu trabalho em evidência, mas também consolidou sua trajetória pioneira, mostrando que era possível atuar como autora trans em um espaço tradicionalmente restrito. Paralelamente, Luh iniciou outros projetos, incluindo trabalhos para o Grupo Globo, enquanto explorava novas formas de narrativa voltadas para identidade, raça e gênero.
Quando a pandemia interrompeu o teatro e tornou inviável a produção audiovisual tradicional, Luh transformou o desafio em oportunidade. Começou a desenvolver roteiros, mantendo a criativa em exercício, mesmo em isolamento. Durante esse período, escreveu Os Quatro da Candelária (Netflix, 2024), premiado com o Prêmio ABRA por melhor roteiro de série dramática, e Da Ponte Para Lá (HBO Max), série na qual assumiu não apenas a autoria, mas também a direção, aprofundando a discussão sobre identidade feminina, negra e trans, além de questões sociais e econômicas.
Hoje, Luh Maza vê o audiovisual como uma extensão natural de seu trabalho no teatro. Para ela, cinema, televisão e dramaturgia são maneiras de potencializar e amplificar discussões, histórias, provocações e inspirações que desenvolve em cena.
“Então, para mim, isso representa uma conquista e uma libertação muito positiva, natural dessa jornada pessoal — um caminho que passou pela arte comprometida em comunicar causas. Agora, num novo momento, quero comunicar além do que se espera, além das demandas sociais, falando sobre todos, incluindo todos. Meu trabalho continua inclusivo e representativo, mas agora coloca personagens e pessoas como eu em situações diversas, abordando temas que vão além de nós mesmos.”
Este ano, Luh celebra oficialmente 20 anos de carreira como diretora e autora, talvez com menos dúvidas cercando sua mente, mas ainda com muitos planos. “E seguimos sonhando, sonhando com os próximos 20 anos. Espero ter cada vez mais liberdade. Liberdade que custa — custa muito, tanto material quanto subjetivamente”, ela conclui a conversa.
Fonte: Bravo!