SURPRESA DO DIA | Guadalupe, manual de reparo para corações trincados

Um ano depois de perder o Chico — e dois depois de me despedir da Cacilda, minha cachorra mais linda, companheira inseparável dele — fiz aquele voto dramático, próprio de quem tem mania de palco, de que nenhum latido voltaria a ecoar na minha vida. Há promessas que fazemos à dor como quem fecha um portão: não para proteger o que está dentro, mas para impedir que qualquer alegria escape de novo. Então surge a mensagem: “Nasceu dia 27 de novembro, mini golden, meu presente pra você.” Respondi “não” com a convicção de quem recita um manifesto… e desliguei o celular para saborear a autoridade recém-conquistada.

Mas recusas são portas — basta alguém encontrar a maçaneta certa. Aceitei o convite de Rodolfo para almoçar com dona Rosário — programa aparentemente inofensivo, desses que cabem numa anedota — e, depois, esticar até Itu só para conhecer a filhote. O destino, porém, trabalha em silêncio, talhando fendas nas convicções: quando segurei aquela bolinha de sol nos braços, alguma represa íntima ruiu sem estardalhaço. Bastou o focinho úmido encostar no meu queixo e o “nunca mais” virou “quando é que a gente volta pra casa?”.

Guadalupe chegou como quem decora endereços de primeira. Miss Simpatia da Praça Roosevelt, colecionadora de selfies, lambe a mão da guarda municipal, abraça hipsters, moradores em situação de rua, fantasmas beckettianos e — suspeito — até poste. No parque, corre como criptomoeda em dia de alta; em casa, assume postura de monja zen. Não roeu um chinelo sequer. Eu exibia a façanha como quem apresenta diploma de Harvard em obediência canina.

Até que, hoje de manhã…

Chego na sala e sou recepcionado por um tufão de fibras sintéticas dançando balé contemporâneo. O sofá, veterano de guerras existenciais, exibe na ponta um rombo expressionista. Guadalupe, cara de abajur ligado, abana o rabo com a segurança de quem acaba de reinventar o design de interiores.

Houve um segundo em que recordei Chico e Cacilda. Eles jamais roeram u um móvel, mas mastigavam o silêncio sempre que pressentiam minhas ausências. Entendi: o estrago no sofá era só um lembrete de que a vida feliz não é a sala impecável — é o risco de perder a mobília para ganhar companhia. Respirei fundo, sentei-me no chão e deixei que Guadalupe lambesse a culpa da minha testa, como quem diz: “o tecido se remenda; teu medo eu cuido”.

Enquanto varria aquela nevasca de espuma, percebi: sofás, como promessas, foram feitos para suportar peso, mas não resistem a certas alegrias com dentes de leite. Talvez eu mande consertar. Talvez adote o buraco como obra de arte participativa: “Instalação em Tecido nº 1 — Guadalupe e o Vazio que Sobrou pra Ser Feliz.”

E, assim, nos escombros de um estofado, Guadalupe me ensinou o verbo que eu andava esquecendo: viver é permitir que o inesperado mastigue as bordas — e, ainda assim, continuar oferecendo colo ao improvável.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1869

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