A noite decidiu montar um espetáculo na minha cabeça e, como sempre, distribuiu os papéis sem avisar o elenco. Lá estou eu – Ribeirão Claro ao fundo, quimono de Phedra de Córdoba rodopiando, salto de tamanco quase tocando o halo da lua. De tão fiel, o sonho parecia reality show, mas com a cenografia dos anos oitenta que minha memória insiste em não aposentar.
A cena abre na casa da madrinha Maria, onde me preparo para uma apresentação improvável – teatro em sala de estar, um clássico dos orçamentos magros. Estou saindo dali, atravessando a rua como quem cruza um palco imaginário, equilibrando cigarro numa mão e a vaidade na outra. É então que um carro freia, quase no compasso de uma batida de samba-enredo. A motorista salta, deixando a porta do carro aberta, enquanto corre uns cinquenta metros, se atirando nos braços de alguém que, deduzo, seja uma saudade antiga – talvez mãe, talvez passado. Meu instinto de conteúdo brilharia em neon: “Grava e posta no TikTok”, eu penso. Mas a nicotina tem seus protocolos e operar o celular com luva de fumaça é acrobacia para dedos mais destemidos. Fico no camarote das calçadas, assistindo à ternura acontecer sem filtros e sem likes.
Sigo até minha antiga casa, pelos fundos, como quem reencontra o próprio roteiro rabiscado em caderno de escola. Há um camarim improvisado: três figuras ajeitam figurinos; reconheço a silhueta da Mariana Leme, mas, quando me aproximo, ela vira Djin Sganzerla num truque digno de cinema marginal. Peço desculpas por invadir e bato em retirada, porque até nos sonhos sou ótimo em saídas de emergência.
Na porta da cozinha de casa, uma placa, algo como; “Proibida a entrada dos atores”. Toco na maçaneta, a porta está destrancada e eu entro. O silêncio ferve em panelas invisíveis até que minha mãe aparece com o mesmo rosto de quando eu tinha vinte e tantos anos. O riso fácil, as linhas de expressão, aquele brilho que cabia inteiro num domingo de fogão aceso. Ela sorri. Seu sorriso poderia acender a rua inteira se faltasse luz. Eu a abraço forte e é um abrraço demorado. Depois, me puxa pelo braço para o quintal: quer me mostrar a obra-prima do momento — uma cerca viva, recém-plantada, crescendo sob a tutela de um jardineiro que calcula: “Dois anos para ficar pronta.”
Dois anos. No relógio do sonho, isso é quase eternidade. No meu, onde os sessenta já aquecem nos bastidores, parece o intervalo de um gole d’água. Mas minha mãe – sempre ela – está radiante com a espera. Entendo, então, que a felicidade daquele instante não mora na cerca pronta, mas na coreografia diária de regar, adubar, conversar com as mudas. É uma lição sobre o tempo: certas saudades, como trepadeiras de jasmim, só se domam com tesouras pacientes.
Acordo no susto; ainda sinto o peso dos tamancos e o perfume de pão tostando no fogão da infância. Automaticamente, procuro o celular para ligar para minha mãe. Demoro uns segundos até que a razão me sacode. Ela já não atende mais chamadas deste lado da linha. E é nessa vírgula que o peito se enche de um vento frio – a saudade ampla, sem moldura.
Volto a fechar os olhos, não para dormir, mas para dar mais cinco minutos ao elenco onírico. Vejo minha mãe sorrindo no jardim, medindo a vida em centímetros de folha recém-nascida. Talvez seja esse o recado da madrugada: cultivar é a arte de alongar o abraço além do tempo permitido.
Então me levanto e vou ao banheiro. Lavo o rosto devagar, como quem apaga a maquiagem pós-espetáculo. Penso que a cerca viva, embora plantada num país paralelo, continua brotando: cada lembrança é um galho que insiste em crescer, mesmo sem terreno. E, se um jardineiro invisível ainda calcula prazos, eu aceito: dois anos, duas décadas, dois séculos – o que for.
Enquanto isso, eu cuido. Sou jardineiro de ausências, plantando frases onde não há voz, regando memórias com humor para que não murchem de drama. Talvez, no próximo sonho, minha mãe me chame para aparar a cerca. Quem sabe eu vá de salto mais baixo, só para não tropeçar na ternura.