GUADALUPE | Por uma Pedadogia do Afeto

Guadalupe chegou pequena. Não só no tamanho, mas naquele jeito desavisado e urgente dos que ainda não sabem o peso do próprio corpo nem os limites do mundo. Uma mini-golden, agora com sete meses de vida, dona de uma energia que parece sempre nova, como se cada manhã fosse a primeira vez que ela abrisse os olhos.

 

Veio num fevereiro — exatamente no dia 25 —, tempo em que o calor parece dilatar tudo: os dias, os sentimentos, as decisões. Um presente de uma pessoa muito querida, como se o afeto precisasse ganhar forma viva para continuar ali, pulsando, respirando do lado de dentro da casa.

 

Guadalupe foi, então, a primeira. Não a primeira cachorra, mas a primeira bebê. Antes dela vieram Chico e Cacilda, resgatados já crescidos, como quem chega com as patas já carregadas de passado. Guadalupe não. Guadalupe chegou virada em travessura, latido e alegria. E, com ela, chegou também um novo tipo de aprendizado: o de cuidar de alguém que ainda está sendo tecido pelo tempo.

 

E tem os gatos. Os gatos que habitam a casa com a dignidade silenciosa dos que sabem que o mundo é deles. Os gatos que, ao contrário de Guadalupe, não correm sem motivo, não pedem atenção aos berros, não se jogam na vida como se ela fosse um brinquedo para roer. Guadalupe, claro, não entende. Acha que os gatos são cachorros em alguma versão estranha. Insiste em brincar com eles. Late, sacode o rabo, avança com o peito inteiro. E os gatos, naturalmente, não devolvem o jogo. Recusam o convite. Mantêm sua dança paralela, como quem vive num outro fuso horário da existência.

 

E aí começou o drama dos latidos. Pequenos no começo, depois persistentes, depois desesperadores. Repreensões, broncas, súplicas. Guadalupe não se dobrava. Tinha, no fundo, a convicção de que bastava latir mais forte para que os gatos entendessem o quanto ela os queria bem.

 

Foi então que veio a memória. Dessas que sobem como névoa do fundo do peito. Lembrei da minha mãe. Lembrei do canto da casa. Lembrei do castigo para pensar. Um espaço de suspensão, não exatamente punitivo, mas meditativo. Uma espécie de pausa dentro da infância. Ali, entre as paredes, a gente era obrigado a escutar o que a boca ainda não sabia dizer. Pensar. O que, para uma criança, é quase sempre uma forma de sentir de outro jeito.

 

Resolvi experimentar com Guadalupe. Quando ela se exalta, quando o latido vira tentativa de imposição, quando esquece que o mundo não é só ela, eu a levo ao quarto de hóspedes. Ali ela vira hóspede de si mesma. Fica alguns minutos em silêncio. Um tempo breve, o suficiente para algo se reorganizar. Quando sai, vem mais calma. Vem com os olhos atentos, como quem percebe que a existência tem regras que não são só ruído.

 

E não é que tem funcionado? Os dias por aqui têm sido outros. Não sem latidos, não sem desencontros, mas com um acordo mais delicado entre espécies e temperamentos. Guadalupe aprendeu a escutar. E eu também.

 

Acho que no fundo, o que ensina mesmo não é o castigo, mas a pausa. O silêncio imposto como chance. A espera como linguagem. Às vezes, a melhor forma de educar é lembrar. Lembrar da criança que fomos, do que nos faltava, do que nos salvava. Lembrar que os vínculos se constroem na repetição dos gestos pequenos. Que é preciso tempo para que um amor aprenda a não machucar. Nem com dente, nem com voz.

 

Guadalupe ainda late, claro. E os gatos seguem sendo gatos – altivos, líricos, mágicos, quase invisíveis. Mas agora há um espaço entre o impulso e o estouro. Um intervalo. Uma fresta por onde entra um pouco de pensamento.

 

E, às vezes, é exatamente aí que começa o milagre.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1877

Um comentário sobre “GUADALUPE | Por uma Pedadogia do Afeto

  1. Apaixonada pelo seu texto que me toca num lugar muito profundo de amor pela construção e pelo aprendizado que toma forma na família multi-espécie mesmo que a maioria de nós não se dá conta do tanto que iremos aprender quando nos propomos a convidar um ser de outra espécie a serem amados por nós. Parabéns Ivam por ser quem você é e pela Guadalupe que a cada dia leva se apropria mais e mais dos nossos corações.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo