SEGUNDA NO TEATRO | Independência ou Morte

por Tania Brandão

O dia pesa sobre as nossas cabeças: 7 de setembro. Ou pesa sobre algumas cabeças. Na realidade, são muitas as vivências da data, diferenciadas segundo cada geração, localidade, classe social. Este negócio de pátria importa mesmo para nós todos? Fora do futebol, para onde vai a bandeira do país?

Um exemplo, para chegarmos a falar de teatro. Houve um tempo em que ver os desfiles militares empolgava as pessoas. Um bando enorme de gente ficava mobilizado, fazia questão de ver uniformes, tanques, cavalos, canhões, mesmo que significassem guerra e morte, mesmo que fossem tristemente obsoletos. Achar tudo aquilo uma chatice sem fim soava como um grande pecado.

Hoje em dia, não sei a quem os desfiles militares são dirigidos, quem se sente empolgado com eles, exceção, claro, de todos os diretamente envolvidos. Será que há um bando enorme de gente ainda empolgada? Ou outras práticas arrastam as almas? Qual seria o ritual pátrio de união da atualidade? Temos algum?

E aí reside um desafio – o que fazer com a pátria amada? Ela ainda é necessária? Haverá um dia, no mundo, um mundo sem países? O mito da Europa Terra de Todos acabou? E as Américas, da Redenção? O nosso abrigo sob a bandeira nacional nos impede de sermos verdadeiramente irmãos de todos os outros filhos de outras terras-mães gentis? Os emigrados sem teto revelam algo a respeito das pátrias?

Vivemos num país jovem, ainda vamos completar duzentos anos, o que é muito pouco. Para construí-lo, muitas empreitadas foram cogitadas, postas em prática ou não. Desde o século XIX perseguimos o sonho de um teatro nacional. Contudo, nosso teatro nacional continua a ser apenas isto, um sonho.

O culto à pátria, se deve existir e deve nos acalentar, deveria passar pelo debate a respeito da arte nacional. Portanto, deveríamos contar com políticas devotadas à expansão da arte. Arte nacional, aqui, deve significar algo muito amplo – impossível desejar ter, num país continental, uma sensibilidade única.

É bem verdade que o poder do Rio de Janeiro, capital nacional a partir 1763 e, para muitos, ainda capital sentimental do país, espraiou por todo o território formas que se tornaram nacionais. Falo de coisas tão díspares como as escolas de samba, o formato do carnaval na rua, em bailes e de novo na rua, o samba, a feijoada, a telenovela global, a forma nua de se vestir…

São modismos? Não podem ser considerados indícios de um sentir nacional? A resposta não é simples. Lembro de uns primos paraenses que, lá na minha infância, apareciam hipnotizados pela cidade maravilhosa para passar o verão no Rio.

Era um estranhamento sem fim. Eles vinham de outro mundo, com outros modos, falavam sem constrangimento na necessária e urgente independência do Norte, para eles, outro país. Traziam frutas e comidas desconhecidas,  dançavam ao som de impensáveis músicas caribenhas, se rebolando de uma forma diferente da nossa. Logo a seguir, conheci gaúchos, também muito estranhos, com o seu fabuloso churrasco, então ainda quase anônimo no Rio.

Ao longo da história, o teatro nunca atuou a favor da costura destas distâncias, suprimidas pelos efeitos, no tempo, da tecnologia. Então, brota a necessidade de perceber o que se perde como construção de um diálogo nacional. O curioso no Brasil é que o sonho, para nós, é sempre sonho mesmo – então, sem problemas, podemos continuar sonhando.

Em nosso apoio, vem o generoso teatron. Sim, trata-se de uma forma teatral nova. A presença, alegada identidade específica do bom e velho teatro, se faz, na arte renovada, como artifício, se faz como intervenção tecnológica, com todos os riscos que esta palavra carrega no Brasil.

A grande mudança reside no diálogo direto, bem mais impositivo, quase como um encontro de almas. O ator fala para a nossa intimidade, para o nosso recolhimento. Portanto, o formato trabalha com uma necessidade aguda de encontro. A sua difusão – ainda é cedo para saber do seu sucesso – impõe a urgência do pensamento a respeito do formato, pois agora, mais do que nunca, está sob o foco a pessoa humana.

Trata-se de uma arte que acontece sem fronteiras: o ator pode estar no Rio e abraçar com a sua exposição alguém que está na floresta amazônica, numa praia do Rio Grande do Norte ou no meio dos pampas.  Também a fronteira antiga da técnica surge embaçada; para estar ali e arrebatar, o ato atoral precisa ser renovado, mudar de intensidade e se saber como ser íntimo.

Para pensar o desafio, dois trabalhos podem ser estudados detidamente. Vale comparar os excelentes desempenhos construídos em duas propostas muito diferenciadas, Parece Loucura Mas Há Método, do Armazém Cia de Teatro, e Todos os Sonhos do Mundo, com Ivam Cabral. Os ingressos para os dois trabalhos, ainda em cartaz, podem ser comprados no Sympla.

Enquanto a cena do grupo brinca gostosamente com a ideia de monólogo, através  do exercício de grupo, o ator solitário embarca sem medo na viagem solo, contracena elegantemente com o público sob diversas intensidades. Em graus diferentes, eles percorrem diferentes estados interpretativos. Eles precisam, contudo, conciliar o estar no quadro com a operação técnica de diversas soluções e efeitos.

Isto significa teatralizar num sentido muito amplo, do ato ao fato, compreendendo-se o fato como a intervenção técnica. O ator precisa ser o seu contrarregra, o seu diretor de palco. A força de cada ator, logicamente, interfere no impacto alcançado.

Os atores do Armazém, envolvidos com personagens de Shakespeare antológicos, trazem uma galeria humana que é patrimônio da espécie e exploram variadas gamas de interpretação. Já Ivam Cabral expõe a plena extensão da teatralidade hoje – percorre a contação, a representação, a apresentação, a performance. O resultado, seja qual seja a temática em jogo, é uma intensa emanação de humanidade.

Há um universo muito rico para ser pensado – o uso do rosto, exigido de forma plástica diferente, a dinâmica do corpo, a presença das mãos, a coloração da voz e da respiração. Para pensarmos juntos este fato novo, a cena virtual está repleta de opções. E muito mais trabalhos vêm por aí, ampliando as possibilidades de escolha e o campo de debates.

Para o dia 9 de setembro, está marcada a estreia de Maitê Proença numa peça pensada precisamente para o novo formato teatron: é um mergulho no lado sombrio de sua vida. O Pior de Mim, com direção de Rodrigo Portella, aborda desafios dilacerantes que a atriz precisou vencer e que podem ser vistos como formas decisivas de elevação humana.

A exposição, ao que tudo indica, é intensa e corajosa, autoficção de tom vibrante, capaz de transcender o pessoal em função de uma compreensão maior do presente. Sobretudo, há o interesse em pensar a condição social da mulher, os problemas atuais da vida profissional, da  misoginia e do machismo.

A peça integra o excelente projeto Teatro Já, do TeatroPetraGold. A proposta, liderada pela atriz Ana Beatriz Nogueira e pelo ator e curador do teatro André Junqueira, foi pensada para viabilizar o teatron e o teatro virtual – quer dizer, transmissão de peças feitas para a rede e de peças encenadas reproduzidas, ao vivo, graças à internet.

Além de manter o teatro vivo e ampliar o seu alcance, pois as transmissões, a partir do palco, alcançam todo o Brasil e o mundo, a iniciativa cuida de manter vivos os que fazem teatro. Metade da arrecadação obtida com a venda dos ingressos se destina ao auxílio de técnicos e artistas, duramente atingidos pela pandemia da covid-19.

Uma outra produção que chega às telas e que importa acompanhar no formato virtual é a peça Nefelibato, interpretação de Luiz Machado de texto de Regiana Antonini. A produção, direção de Fernando Philbert, fez carreira na cena. Agora em apresentações virtuais, ela traz um debate forte para a crise econômica enfrentada pela sociedade brasileira, pois o foco recai sobre um homem que, depois de  perder tudo, acabou na rua.

Em resumo, o convite é este. Não fuja, aceite o jogo. Dá para comemorar o dia da Pátria de uma forma diferente, pensando. Talvez pareça ser um disparate, tentar pensar as questões do nacional, diante da crise profunda do país, e a partir destes trabalhos.

Pois, afinal, o traço comum de tais peças reside na constatação de que todas se apresentam impregnadas de um humanismo profundo, amplo, geral e irrestrito, muito maior do que qualquer rincão, mais amplo do que todas as aldeias. Contudo, vale a ressalva: é o ser, a humanidade, quem faz a terra. E não o contrário.

Portanto, pensar o nacional deve surgir como algo intrinsecamente ligado ao ato de pensar o humano. Em particular porque a desumanidade, no Brasil, talvez tenha sido sempre o maior obstáculo para que cada um aqui pudesse se sentir parte do mesmo ser. A desumanidade nos impediu de sermos nacionais. Como poderíamos ser irmãos de verdade submersos na escravidão e numa miséria desumanizadora?

Enfim, vamos reconhecer, a pátria nos pesa – o teatro tem a obrigação de apontar o peso e unir as mãos para que ele não perdure sobre os ombros das futuras gerações. Não é populismo, nem pieguice: é visão objetiva do verdadeiro sentido da arte, esta prática sem pátria capaz de acalentar sempre o coração humano.

Fonte: Folias Teatrais

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
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