Acordei com o relógio prometendo pressa: véspera de Dia das Mães, rota relâmpago Congonhas–Curitiba, a mala meio vazia e Guadalupe – nossa mini-golden recém-alfabetizada em travessuras – entregue aos cuidados de Elisa, de última hora. No avião, tentava medir a distância até as lembranças, mas elas decolaram primeiro: atravessaram a janela oval, misturaram-se às nuvens e sentaram-se no assento ao lado.
Curitiba me recebeu num tapete gelado, fazia muito frio, aquele cinza que engana o desavisado e acalenta quem conhece o truque: nublar o céu para acender por dentro. Na casa da Irani, o tempo resolveu brincar de estátua. Cada canto lembrava um parente, cada xícara chamava pelo seu dono. Falamos como quem desempoeira fotografias: soprávamos nomes, histórias, invenções de infância diante da casa de madeira amarela, janelas azuis, cheiro de lenha e feijão no fogão. Tudo intacto no museu desordenado da memória.
Domingo chegou vestido para festa. Organizamos um almoço que era menos refeição e mais ritual – a liturgia do reencontro. Quando o karaokê acendeu seu néon, reconheci ali o maestro secreto da cerimônia: bastou a introdução de “Como É Grande o Meu Amor Por Você” para que o passado abrisse a porta da cozinha e puxasse cadeira. As vozes, desafinadas com elegância, costuravam tempo sobre tempo; cada verso de Roberto Carlos virava fio de sutura, fechando feridas antigas, abrindo outras mais fundas. Quem disse que lembrança é curativo não entendeu o veneno.
Chegaram Claudio, sua gente, as meninas da Irani e do Edelcio, meu cunhado, um neto correndo sob a mesa – e de repente éramos um coro de gerações disputando microfone e memória. Entre um agudo torto e o tilintar dos copos, percebi que saudade não é doença infantil; é músculo: cresce, endurece, às vezes dói ao esticar, mas sustenta. Ela nos mantinha de pé enquanto o passado rodopiava, os ausentes ocupavam cadeiras vazias, e o futuro – esse estranho sempre atrasado – tomava notas mentais do que lhe caberá continuar.
Soou a última faixa, e tudo coube num refrão: viver é carregar a própria dor de estimação pela coleira curta, sem deixar de dançar. Voltei ao aeroporto com o cheiro de madeira pintado no casaco, a barriga cheia de riso, a memória latejando como músculo depois do treino. Guadalupe me recebeu com latidos de quem narra aventuras inenarráveis; respondi com um abraço cúmplice, certo de que, no álbum onde a vida mistura retratos, ela terá sua página de bicho entre demais capítulos humanos.
E assim o domingo encerrou-se: nublado por fora, incendiado por dentro, prova irrefutável de que o tempo não cura nada – ele apenas nos ensina a cantar acima das cicatrizes.