SATYRIANAS | Onde a cidade descobre que tem coração

Podem repetir à exaustão que a Virada Cultural nasceu inspirada na Noite Branca de Paris, lá em 2002, quando a cidade-luz decidiu amanhecer acordada. Podem dizer, podem insistir. Faz parte do folclore das comparações que tentam, a todo custo, organizar o mundo em genealogias claras. Mas a verdade é que, muito antes disso, já havia uma pequena rebelião silenciosa acontecendo no centro de São Paulo. Em 1991, quando ainda éramos jovens o suficiente para acreditar que o impossível era apenas uma questão de logística, criamos as Satyrianas. E, desde 2001, essa festa teimosa e luminosa acontece todos os anos na Praça Roosevelt.

Com uma diferença crucial. Se Paris e São Paulo celebram suas viradas em 24 horas, nós sempre preferimos o excesso. Somos escandalosos. O excesso como método, como poesia, como resistência. As Satyrianas nunca duraram menos de 72 horas. Houve edições que atravessaram 78. E este ano passamos das 80. Ininterruptas. Sem que o pulso da praça caísse devagar. Sem que a arte fechasse os olhos por um instante sequer.

E então acontece aquele milagre que ninguém consegue explicar direito. A praça começa a se encher, e de repente não é mais São Paulo. É um organismo vivo, pulsando teatro por todos os poros. Este ano, mais de 1.500 artistas. Um público que se aproxima dos 40 mil. Vem gente de 21 estados. Jovens que chegam em caravana ou em ônibus de turismo, que ainda treinam o olhar nas escolas de teatro e veteranos que carregam décadas de cena nas mãos. Chegam em bando, como quem retorna a uma casa ancestral. Porque, de algum modo, as Satyrianas são isso. Uma espécie de território afetivo que acolhe todos os que acreditam no encontro como transformação.

O urbanista Mauro Calliari escreveu nas redes sociais que eu e Rodolfo reinventamos a Praça Roosevelt. Acho bonita essa palavra. Reinventar. Ela carrega a possibilidade de olhar para algo conhecido e, ainda assim, enxergá-lo pela primeira vez. Mauro disse sentir surpresa ao ver multidões ocupando a praça a qualquer hora, respirando arte, liberdade e encontro. Depois fotografou a programação – quase 500 atrações – e se perguntou: “de onde vem tanta gente para assistir tanto teatro?”

Eu juro que também não sei responder. Tento pensar, mas não acho a origem desse rio humano que desce para a Roosevelt todos os anos. Só sei que ele existe, que volta, que se reconhece ali. Talvez porque o teatro, quando é honesto, cria imantação. Atrai o que precisa atrair. Talvez porque, há 36 anos, contamos nossas histórias com um tipo de entrega que não se explica. Apenas se vive. Talvez porque a praça, essa velha guerreira, aprendeu a pulsar no mesmo ritmo que nós.

O que eu sei é que, diante de tanta gente chegando, ano após ano, o que sinto é gratidão. Uma gratidão tão antiga quanto as primeiras luzes que acendemos nos porões da cidade. O milagre do teatro não é a cena, nem a dramaturgia, nem mesmo o ator. O milagre do teatro é esse movimento contínuo de gente que aparece para ver o que estamos fazendo. Como se quisesse conferir se ainda estamos vivos, se ainda faz sentido, se ainda vale a pena sonhar junto.

E a resposta é sempre sim. Porque enquanto houver alguém disposto a atravessar a cidade para assistir uma peça às três da manhã, a arte seguirá respirando. E nós, junto com ela.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1976

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