Eu amo retrospectivas. Sempre acho que é um momento em que acertamos contas conosco mesmos, confrontando nossas escolhas, celebrando as conquistas e reconhecendo as falhas. É quando colocamos nosso fôlego e poder de realização na ponta do lápis para traçar novos rumos e definir passos mais firmes.
Ao final deste 2024, o que fica é a impressão de um percurso marcado pela dor da despedida, mas também pela potência da arte, pela partilha de saberes e pela consolidação de um legado cultural sólido e generoso. Cada encontro, cada publicação, cada espetáculo e cada projeto desenharam um ano que, sem dúvida, deixará memórias duradouras e impulsionará os passos futuros.
Este foi um ano marcado por intensas emoções, marcos profissionais e transformações profundas. Enquanto a partida do nosso amado Chico, meu labrador caramelo, no final de 2023, trouxe melancolia aos primeiros meses, a energia criativa e as oportunidades que se desdobraram ao longo do tempo resultaram em novas conquistas e renovaram a nossa esperança.
Celebrei não apenas os 35 anos da minha trajetória profissional no teatro, mas também momentos de intercâmbio cultural, o florescimento de novas publicações, parcerias consistentes e a consolidação de eventos artísticos marcantes. A cada etapa, o teatro, a literatura, a formação pedagógica e o cinema entrelaçaram-se, confirmando o valor da troca, da reflexão e do encontro com o outro.
Foi igualmente um ano intenso na minha clínica psicanalítica. Nesse espaço de escuta e reflexão, aprendi muito, o que exigiu não apenas dedicação contínua, mas também a disciplina de acordar muito cedo todos os dias para dar conta de tanto trabalho.
Ao olhar para trás, vejo um ciclo de desafios superados, encontros marcantes, homenagens e inspirações para o que está por vir. Vamos, então, aos momentos mais significativos!
JANEIRO
— O ano começou com uma mistura de dor e renovação. Em meio à tristeza pela perda de Chico, viajamos à Índia, eu e Rodolfo, levando as cinzas dos amados Chico e Cacilda para o Rio Yamuna, em Mathura, um lugar de profundas conexões espirituais. Marcou não apenas um rito de despedida, mas um tributo ao sagrado e à memória.
— Visitamos o Taj Mahal e participamos de um festival internacional de escolas de teatro em Kerala, sul da Índia, para discutir pedagogias e refletir sobre a ecologia humana no ensino das artes. Por fim, sobrevoamos o Himalaia, uma experiência que brindou o mês com uma percepção sublime do divino.
— O grande encantamento desta viagem à Índia foi conhecer Kalamaladan, a mais importante escola de katakhali e outras danças do sul da Índia – dez anos de formação, com dez horas diárias de treinamento e aulas.
— Participamos do International Festival of Theatre Schools, na cidade de Thrissur, em Kerala, ao sul do país. Minha fala, “Alteridade na relação com o meio ambiente”, versou sobre o nosso erro de pensar que ecologia e meio ambiente só diz respeito à natureza, rios, árvores. Para mim, antes, ecologia e meio ambiente têm a ver com gente, com pessoas e precisamos nos colocar no centro dessas discussões.
— Janeiro, também, foi o mês em que recebemos o querido Luis Galina no conselho de administração da Adaap, a Associação dos Artistas Amigos da Praça que gere a SP Escola de Teatro.
FEVEREIRO
— Como docente, participei, no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP, do curso “O sujeito histórico ‘Teatro de Grupo no Estado de São Paulo”, baseado em pesquisas e publicações desenvolvidas por Alexandre Mate, Marcio Aquiles, Elen Londero e por mim. Esse momento ressaltou a importância do teatro de grupo e seu papel histórico e pedagógico, firmando pontes entre a prática e a reflexão acadêmica.
MARÇO
— Participo da peça “Perros”, concebida por Monina Bonelli para a MITsp. Inspirada na minha história com Chico, a arte, mais uma vez, servindo de espelho para as múltiplas formas de ligação entre mundos.
ABRIL
— Pelo Selo Lucias/Urutau, lançamento do romance “A Estátua de Sal de Sodoma”, obra póstuma do crítico de teatro, ator, dramaturgo e escritor Alberto Guzik, falecido em 2010 e que me confiou os originais 14 anos atrás.
MAIO
— Lançamento do livro “Entre Almanach”, organizado por mim em conjunto com Marcio Aquiles, Robson Corrêa de Camargo e Tomasz Wiśniewski, onde assino um artigo para falar da obra de Samuel Beckett e a psicanálise. Publicação do Selo Lucias, em parceria com a Universidade de Gdańsk (Polônia) e a Universidade Federal de Goiás.
— Também foi lançado mais um número da revista A[L]BERTO, a de número 10, onde explorei o tema da subjetividade em um artigo sobre branquitude.
JUNHO
— A SP Escola de Teatro lança “Breves Apontamentos Sobre o Teatro Das_Nas_Pelas_Periferias”, obra coletiva que amplia o olhar sobre a produção teatral brasileira, contemplando grupos históricos, artistas do presente e novas linguagens. Organizada por Alexandre Mate, participo da edição escrevendo sobre a dramaturga Renata Pallottini (1931–2021). Trata-se de uma obra que reforça o compromisso com a descentralização do saber e da arte.
JULHO
— Em sua quarta edição, o Festival Satyricine levou ao Cine Satyros Bijou – Sala Patrícia Pillar uma safra de filmes inéditos, celebrando a sétima arte e ressaltando a trajetória da atriz Gilda Nomacce, grande homenageada deste ano.
— Estreia de “A Casa de Bernarda Alba”, de Federico García Lorca, Teatro Raul Cortez, no Sesc 14 Bis. A peça continuou temporada no nosso Espaço dos Satyros, na Praça Roosevelt, durante o ano.
— Pelo Selo Lucias, o lançamento do livro “Eternizar em escrita preta – Volume 4”, com dramaturgias de Djalma Ribeiro da Silva Junior, Luz Ribeiro e Mariana Ozório, vencedores do Prêmio Solano Trindade 2023, celebrando novas dramaturgias e reafirmando o compromisso com a diversidade e a valorização de vozes afrodescendentes.
AGOSTO
— Lançamos o livro “Os Satyros: Teatricidades, Experimentalismo, Arte e Política”, pelas Edições Sesc. Com organização de Marcio Aquiles, o livro traz ensaios dos pesquisadores Kil Abreu, Marici Salomão, Miguel Arcanjo Prado, Beth Lopes, Guilherme Genestreti, Silas Martí e o casal norte-americano Dana e Ricky Young-Howze que tecem reflexões sobre as práticas artísticas, as proposições pedagógicas e as atividades socioculturais do grupo. A apresentação do livro é do saudoso Danilo Santos de Miranda.
SETEMBRO
— Expandindo o diálogo cultural para além do palco teatral, assino contrato com a rede de cinemas Cinesystem para assumir a curadoria das salas dos complexos Frei Caneca, em São Paulo, e Botafogo, no Rio de Janeiro.
— Estreia na em Malmö, na Suécia, a peça “Snön i Brasilien – Anna, Du Kan Väl Stanna” (em português, “A Neve do Brasil – Anna, Você Pode Ficar”), escrita por mim e Rodolfo García Vázquez.
— Produzido pelos Satyros, Andre Lu dirige o espetáculo “Fluxo”, trazendo à tona as tensões e os sonhos da juventude periférica em um retrato dinâmico e sensível da realidade de São Paulo.
— Os pesquisadores Aleksandar Sasha Dundjerovic, da Bósnia, e Maria José Martínez Sánchez, da Espanha, publicam o livro “Placeness and the Performative Production of Space”, lançado pela Bloomsbury Publishing, de Londres. Entre os estudos do livro, estão o trabalho do coletivo catalão La Fura Dels Baus, em Barcelona; a Quadrienal de Praga; o trabalho dos Satyros na Praça Roosevelt, em São Paulo; o Portland Inn Project, em Stoke-on-Trent, Reino Unido; o Campo de la Cebada, em Madri; e espaços digitais criados por artistas na Índia e na Bósnia e Herzegovina.
— Participo do I Encontro Rede Internacional de Teatro Comunidade e Artes Participativas, em Funchal, na Ilha da Madeira, em Portugal, para discutir a questão da acessibilidade em nossas práticas de trabalho na gestão da SP Escola de Teatro.
OUTUBRO
— Lançamento do livro “Os Satyros: Teatricidades, Experimentalismo, Arte e Política”, pelas Edições Sesc, na Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip.
— Pelo segundo ano consecutivo, o nosso Cine Satyros Bijou – Sala Patrícia Pillar recebe a Mostra Internacional de Cinema em São Paulo. Assim como na edição anterior, a repescagem, realizada ao final do evento, ocorre apenas em dois cinemas: o Cine Sesc e o nosso Bijou, reconhecido como uma das melhores salas de projeção da cidade.
NOVEMBRO
— As Satyrianas celebraram mais uma edição de intensa programação, conectando 13 estados brasileiros e seis países, com teatro, cinema, dança, circo e múltiplas artes. Foi uma afirmação da diversidade cultural, reunindo milhares de pessoas e artistas.
— Eu e Rodolfo García Vázquez somos homenageados com a Cruz da Referência Nacional, pela Ancec.
— Pelo segundo ano consecutivo, realizamos a “Mostra da Diversidade do Novo Cinema Brasileiro”. O evento, que aconteceu na Sala Patrícia Pillar, exibiu filmes em seis categorias temáticas, acompanhados de debates com realizadores e especialistas. As categorias incluíram: “Mulheres no Cinema”, que destacou produções realizadas ou protagonizadas por mulheres; “Cinema dos Povos Originários”, para valorizar obras criadas por artistas indígenas; “Identidade Negra no Cinema”, que abordou a cultura afro-brasileira e os desafios enfrentados pela comunidade negra; “Cinema LGBTQIAPN+”, que retrata experiências e histórias dessa população; “Cinema da Periferia”, para dar voz às comunidades periféricas; e “Cinema 60+”, focado em histórias de pessoas mais velhas.
— Lançamento do livro “Eternizar Em Escrita Preta – Volume 5”, com dramaturgias de César Divino, Michel Xavier e Monize Moura, premiadas no Prêmio Solano Trindade 2024.
DEZEMBRO
— Na reta final do ano, estreei “De Quanto Amor Precisa uma Pessoa?”, que veio ao mundo em forma de performance, ainda em processo, investigando a relação íntima entre pessoas e animais. Neste trabalho, o público foi convidado a ser coautor do projeto, apontando caminhos para uma futura peça de teatro que deve nascer no próximo ano. Assim, o ano se encerrou com a certeza de que a criação, o diálogo e a procura de um olhar sensível para o outro possam continuar sendo a minha maior fonte de inspiração.
— Ao assumir a curadoria dos cinemas Cinesystem Frei Caneca e Cinesystem Botafogo, alcançamos um marco notável: assegurar, em cada unidade, uma sala inteiramente dedicada ao cinema nacional. O projeto é inaugurado com a exibição de “Feliz Ano Velho”, de Roberto Gervitz.
Despedida e futuro
Assim, me despeço de 2024 que me trouxe um rastro de criações, diálogos, parcerias e descobertas.
Num ano em que a dor da perda encontrou o consolo na arte, cada encontro, página, voz e presença sobre o palco ou na tela tornou-se semente para as próximas jornadas.
A certeza de que a força criativa pode transformar despedidas em legados e gerar novos horizontes culturais segue alimentando o meu desejo de seguir adiante, renovando o compromisso com a sensibilidade, o respeito e a coragem de construir futuros mais generosos.
Agradeço imensamente pela companhia ao longo deste caminho. Que o novo ano traga ainda mais inspiração, encontros e a convicção de que, juntos, continuaremos a celebrar a vida, a arte e a humanidade. Um abraço afetuoso e um feliz ano novo a todas e todos!
Gosto do seu trabalho e me emociono sempre com voce no teatro.
até fiquei cansato, rs