REFLEXÃO | O Pai, a Castração e a Voz: Breve reflexão de “Homem com H”

Assistindo a Homem com H, a cinebiografia de Ney Matogrosso, é impossível não enxergar, sob as camadas de purpurina, androginia e potência cênica, o rastro de uma história de pai e filho que carrega as marcas mais arcaicas do que Freud nos ensinou sobre a formação de um sujeito.

 

Ali está o pai: militar, rígido, representante de uma ordem fálica que não admite desvios. Aquele que, em vez de simbolizar a castração – isto é, de funcionar como um limite estruturante para o desejo – parece encarná-la em sua forma mais concreta e violenta. O pai de Ney não metaforiza, não elabora, não interpreta. Ele executa a interdição. Obriga o filho a tarefas físicas duras, o expõe ao sofrimento como método educativo. Freud, em Totem e Tabu, descreveu bem essa figura do pai tirânico: aquele que impõe a Lei não por mediação simbólica, mas pela força bruta.

 

Do outro lado, temos Ney. O filho que não reage pela via do enfrentamento direto. Freud talvez dissesse: o recalque não é só uma defesa, é uma estratégia de sobrevivência. Ney não rompe fisicamente com o pai, mas constrói uma fuga muito mais sofisticada: a sublimação. Constrói um corpo impossível de ser domado, uma voz impossível de ser silenciada. Em vez de responder ao pai com a guerra, responde com o canto, com o brilho, com a sexualidade tornada espetáculo.

 

Freud, em seus textos sobre o narcisismo e a sublimação, nos lembra que muitas vezes é no campo da criação estética que o sujeito elabora o trauma. Ney transforma o que poderia ser uma neurose paralisante em produção cultural, em beleza, em gesto político. Cada movimento de seu corpo no palco é uma devolução irônica à castração recebida, algo como: “me quiseste homem segundo tua medida, agora serei homem segundo a minha invenção”.

 

A relação com o pai permanece em crise durante décadas. Freud falaria de um ódio amoroso, essa mistura pulsional onde a agressividade e o desejo de reconhecimento caminham lado a lado. Ney não rompe, mas também não cede. Vai se tornando cada vez maior, até que a voz da sociedade – aplausos, prêmios, respeito público – vá, pouco a pouco, criando um lugar impossível de ser ignorado.

 

Quando o pai envelhece, a força física cede. Só aí que, muitas vezes, o luto pelo pai idealizado pode começar. Não o luto de quem ama plenamente, mas o luto possível: o luto por aquilo que nunca foi. O reencontro tardio, que o filme toca com delicadeza, carrega o sabor amargo das reconciliações possíveis apenas quando o poder já mudou de mãos.

 

No fim, Ney permanece como o filho que recusou a normatividade, mas que, simbolicamente, precisou matar o pai para afirmar sua existência. Ele o deixou morrer no tempo certo. E, talvez, esse tenha sido o ato mais freudiano de todos: transformar o ódio e o desejo de vingança numa obra de arte que, décadas depois, ainda nos convoca ao desejo, à dúvida e à desobediência.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1869

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