REFLEXÃO | Entre Privilégio e Direito: Cartografia do Acesso

Chamar alguém de privilegiado tornou‑se, nos últimos anos, um atalho retórico que oscila entre denúncia moral e diagnóstico sociológico. Mas, como qualquer atalho, ele oculta a topografia que importa: quem decide o traçado, quem paga o pedágio, quem chega primeiro. Nasci à margem desse mapa. Quinto dos seis filhos de um pedreiro analfabeto e de uma costureira que costurava não apenas roupas, mas orçamento e futuro, cresci em uma pequenina cidade do interior do Paraná, Ribeirão Claro, colhendo comida que, se não brotasse da terra, não brotaria na mesa. A palavra privilégio, nesse ambiente, pairava distante como uma constelação invisível a olho nu. Eu não a recusava; simplesmente não a reconhecia.

Com o tempo, percebi que o sentido moderno de privilégio deriva, paradoxalmente, de um ideal que lhe é oposto: o de direito. Quando passa do latimprivilegium” — a lei privada, feita sob medida para poucos — à gramática democrática, o termo atravessa uma metamorfose: primeiro significa exceção jurídica; depois vira sinônimo de vantagem estrutural; por fim, desgaste retórico. Wendy Brown, da Universidade da California, sugere que deveríamos dobrar essa curva e devolver privilégio à forja dos direitos, universalizando o que hoje é benefício escasso. Nessa operação, o que conta não é distribuir indulgências, mas redefinir as condições de possibilidade — o “campo de jogo”, diria Bourdieu — para que não existam degraus invisíveis entre prerrogativa e norma.

Chego, então, à diferença que me inquieta desde menino: inclusão ou acesso? Inclusão pressupõe um núcleo que admite satélites, como se a sociedade fosse um clube capaz de carimbar passaportes morais. Acesso, ao contrário, dissolve a porta: não pergunta quem entra nem exige contrapartida simbólica. Foi o que me faltava aos dez, quinze, vinte anos. Não desejava pertencer a uma “elite letrada”; queria atravessar o portão da biblioteca municipal sem sentir que invadia território alheio. Paulo Freire, com a prosa paciente dos que já viram muita cerca, escreveu que a palavra é direito de todos, não salvo‑conduto de poucos. Em Freire, alfabetização não é caridade, mas reapropriação do mundo por quem o habita. Na minha vida, a escola — essa instituição meio capenga, meio heroica — funcionou como passarela sobre o abismo que separava a pá de pedreiro do caderno. Chamá‑la de privilégio seria inverter causalidade: não foi graça recebida, mas luta travada para resgatar um direito usurpado antes mesmo do meu nascimento. Foi assim que me tornei doutor pela Universidade de São Paulo.

A narrativa biográfica, contudo, corre o risco de reforçar o mito liberal do “self‑made man”, no qual a vitória individual serve de prova de que barreiras coletivas são superáveis por esforço pessoal. É falsa conclusão. Meu percurso confirma a exceção, não a regra: se alguém abre caminho com facão, é porque a estrada pública não foi pavimentada. Assim, quando, já adulto, abraço o teatro — arte cujos bastidores conhecem melhor a precariedade do que a ribalta — carrego comigo essa gramática do acesso. O palco me interessa como zona de distribuição de presença: ali, qualquer corpo, voz ou silêncio tem direito a existir em primeiro plano. O desafio não é “incluir” quem veio da plateia, mas impedir que a coxia seja reservada apenas a iniciados de berço urbano ou acadêmico.

No plano político, isso implica reconfigurar a própria ideia de Estado. Se privilégio jurídico era, no Antigo Regime, licença outorgada a corporações, e se o constitucionalismo moderno respondeu proclamando direitos iguais, por que ainda persistem ilhas de exceção que se camuflam em “mérito”, “performance”, “fit cultural”? A resposta não está apenas em leis, mas em dispositivos sutis: linguagens, capitais simbólicos, redes de sociabilidade. Hannah Arendt chamou de “direito a ter direitos” o fundamento de toda pertença pública. Quando tal fundamento falha, o que floresce não é cidadania plural, mas contabilidade moral que hierarquiza existências.

Não me considero privilegiado porque recuso a lógica que transforma sobrevivência em troféu. Prefiro dizer que fui — e continuo sendo — alguém em disputa permanente por condições de existência digna. Minha história poderia ser metáfora edificante; escolho tratá‑la como sintoma de um déficit de justiça distributiva. Ao rebatizar privilégio como direito, como propõe Wendy Brown, não exalto minha trajetória; denuncio o escândalo de ela ter sido excepcional. Um país em que o acesso universal à educação ainda soa como concessão magnânima permanece refém da antiga lex privata, agora mascarada por verniz meritocrático.

Talvez devêssemos, então, aposentar a palavra privilégio, não por insignificante, mas por anacrônica. No horizonte democrático que vale a pena imaginar, aquilo que hoje designamos como privilégio — poder ler, falar, circular, criar — será tão banal quanto ar respirável. Até lá, cabe‑nos a tarefa freireana de devolver a palavra a quem dela foi desapossado e a tarefa arendtiana de garantir que esse ato não dependa de benevolência de ninguém. Se a minha biografia tem alguma utilidade pública, é provar que uma vida não deveria atravessar labirintos para alcançar o óbvio: o direito de ser, sem carimbo de exceção, apenas cidadão entre cidadãos.

Ator, roteirista e cineasta. Co-fundador da Cia. Os Satyros e diretor executivo da SP Escola de Teatro.
Post criado 1840

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts Relacionados

Comece a digitar sua pesquisa acima e pressione Enter para pesquisar. Pressione ESC para cancelar.

De volta ao topo